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As limitações do Projeto de Lei Complementar nº 206/2015 e uma alternativa comprovada para a construção do equilíbrio fiscal no RS
Não é novidade: o Estado do Rio Grande do Sul, com raras exceções pontuais, apresenta déficits orçamentários há décadas.
Para manter a máquina pública operando nesse cenário, as administrações estaduais utilizaram uma série de alternativas, tais como o congelamento de salários em cenários de inflação elevada, a ampliação do endividamento do Estado, a venda de patrimônio público, o aumento de tributos e a utilização de recursos de terceiros.
No entanto, o desequilíbrio persiste e, conjugado com as dificuldades da crise econômica pela qual o Brasil passa, tem sido motivo para alardear pânico na sociedade gaúcha, com ameaças de atrasos recorrentes nos pagamentos, congelamento da remuneração dos servidores, bem como corte nos já reduzidos volumes de investimentos.
Para enfrentar as dificuldades, uma série de propostas foi apresentada pelo Poder Executivo à Assembleia Legislativa para discussão.
Dentre elas, o Projeto de Lei Complementar nº 206/2015, que cria normas de finanças públicas com o divulgado objetivo de alcançar o equilíbrio financeiro das contas públicas estaduais. Na imprensa, o projeto foi anunciado com o rótulo de "Lei de Responsabilidade Fiscal Estadual”, tentando associá-lo com os ganhos promovidos pela conhecida Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a Lei Complementar nº 101/2000, vigente desde 4 de maio de 2000.
De fato, grande parte dos dispositivos do projeto apresentado, quando não constituem mera transcrição, são fundamentados na própria previsão da lei nacional. Trata-se, no entanto, de uma proposta bem mais sucinta, com apenas oito artigos, enquanto a Lei de Responsabilidade Fiscal conta com 75 dispositivos.
Além dessa consideração, é necessário ressaltar que a proposta não é inédita no cenário estadual, pois, em essência, já foi objeto do Projeto de Lei Complementar nº 390/2007, rejeitado por unanimidade pela Assembleia Legislativa gaúcha.
No que diz respeito a seu conteúdo, a proposta inicia reproduzindo conceitos e apresentações já utilizados na Lei Complementar nº 101/2000. Destaca-se, no primeiro artigo do projeto, a fixação de um critério de atualização da receita corrente líquida, o IPCA. Com isso, uma parcela do crescimento nominal na receita, referente à inflação, será eliminada. O resultado, que se aproximará da variação real da receita corrente líquida (RCL), resultará em um percentual inferior ao atualmente apurado, limitando, como consequência, o crescimento da despesa na mesma proporção.
O segundo artigo restringe-se a indicar os limites de gasto com pessoal previstos nos artigos 19 e 20 da LRF, sem inovações. Nesse ponto, o projeto diferencia-se substancialmente do rejeitado Projeto de Lei Complementar nº 390/2007, que detalhava a forma de cálculo do limite com critérios mais rigorosos do que os utilizados pelo Tribunal de Contas do Estado do RS. A desistência da proposta de mudança nesse ponto pode ter um viés pragmático: se adotados os critérios previstos no projeto rejeitado anteriormente pela Assembleia Legislativa, mais rigorosos, o descumprimento da norma e a aplicação de sanções seriam praticamente inevitáveis nos próximos anos, mesmo com uma série de medidas de restrição ao crescimento remuneratório dos servidores.
Apesar de a proposta não inovar no limite geral em relação aos gastos com pessoal, o artigo terceiro, com inspiração nos artigos 71 e 72 da LRF, transitórios e aplicados na época da promulgação da norma (ano 2000), acrescenta outras restrições, além daquelas já previstas no art. 22 da LRF, para o caso de a despesa com pessoal exceder 95% do limite legal.
Em resumo, além de limitar novas nomeações, reajustes salariais e alterações de carreira, como já prevê a legislação vigente, o crescimento da despesa no ano seguinte ficará restrito à correção da inflação medida pelo IPCA, e o do segundo ano subsequente, à inflação e 25% do crescimento da receita corrente líquida. Junto com os dois limitadores, estabelece-se um teto de 90% do crescimento da RCL para a variação na despesa com pessoal.
Trata-se de mais um limite para a variação nos gastos com pessoal que, se aprovado, reforçará a aplicação de restrições em breve, tendo em vista que a despesa com pessoal já se aproxima do limite legal.
Vencidas as limitações específicas ao gasto com pessoal, o artigo quarto passa a tratar de limites para ações que impliquem aumento de qualquer despesa. Além de repetir os requisitos já previstos no artigo 16 da LRF, especificando metodologias de cálculo, o dispositivo acrescenta a necessidade de cumprimento dos limites de gasto com pessoal, já mencionados anteriormente. Ou seja, além das consequências já previstas no caso de descumprimento de limites aos gastos com pessoal, visando a limitar o aumento da própria despesa, o Projeto de Lei Complementar nº 206/2015 restringe o crescimento de outros tipos de gasto.
O quinto artigo inicia reproduzindo o já disposto no artigo 17 da LRF, conceituando despesas de caráter continuado, que envolvem a execução em período superior a dois exercícios. Para elas, além das limitações já existentes na LRF, também será necessário comprovar o atendimento dos limites de despesas com pessoal, com ressalva para correções decorrentes da inflação, e os limites estabelecidos na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Além disso, inclui expressamente dentre as hipóteses de aumento da receita a redução de benefícios fiscais.
O artigo sexto do projeto adapta sanções previstas nos artigos 15 e 21 da LRF para o caso de descumprimento das limitações previstas. Além disso, veda qualquer forma de aumento da despesa com pessoal nos 180 dias anteriores ao final do mandato do titular ou que tenha efeitos em gestões futuras, mesmo que aprovada anteriormente.
Apesar da compreensível preocupação com atitudes de gestores públicos que propõem aumento na despesa com pessoal em períodos eleitorais ou cujo ônus de pagamento será repassado para o futuro gestor, a proposta é tão abrangente na restrição que, em uma interpretação restrita, pode inviabilizar a utilização de instrumentos de gestão de pessoal importantes e já normatizados anteriormente. Isso porque a proposta trata de forma genérica o aumento de despesa com pessoal, e não o aumento salarial, que de fato possui caráter de longo prazo. Assim, pagamentos de verbas como horas extras, diárias e substituições podem ser restringidos. Isso sem falar na nomeação de novos servidores e promoções, que podem restar paralisadas durante todo o semestre no encerramento do mandato governamental.
Após seis artigos que, apesar de tratarem de outras despesas, estão fortemente focados no volume daquelas relacionadas com pessoal, o artigo sétimo traz uma restrição que pretende incrementar as receitas: a vedação de concessão ou ampliação de incentivos fiscais nos dois últimos quadrimestres de governo.
Em princípio, o objetivo do dispositivo, novamente, é evitar abusos, tornando mais claras restrições que já poderiam ser extraídas de uma leitura do art. 42 da LRF, em conjunto com o parágrafo 10 do art. 73 da Lei nº 9.504/97, que trata da matéria no período eleitoral. Ocorre que, na expectativa de evitar excessos, o dispositivo é tão restrito que praticamente inviabiliza a fruição de benefícios fiscais nos dois últimos quadrimestres do final do mandato do titular do Poder Executivo, mesmo que tenham sido concedidos anteriormente.
Assim, benefícios fiscais historicamente reconhecidos, com os mais diversos objetivos, são tratados da mesma forma que aqueles oportunamente concedidos, no apagar das luzes da gestão governamental, em prejuízo à saúde das finanças públicas.
O último artigo limita-se a tratar da vigência da norma.
Assim, apesar das peculiaridades em geral já relatadas, o projeto concentra-se fundamentalmente em dois eixos: um deles fundamentado no acréscimo à Lei de Responsabilidade Fiscal de restrições nas despesas com pessoal, com as consequências práticas já indicadas, e o outro na restrição aos benefícios fiscais.
No que diz respeito à restrição nas despesas com pessoal, o artigo 169 da Constituição Federal prevê que elas não poderão exceder limite previsto em lei complementar. O Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu, em análise da Lei nº 14.506/09, do Estado do Ceará (ADI 4.426), que a norma indicada pela Constituição Federal é lei complementar nacional, no caso a atual Lei Complementar nº 101/2000. Segundo o STF, nada impede, mesmo assim, que as unidades da Federação criem normas próprias mais restritivas nos limites de despesa que a regra nacional, já que o texto constitucional veda apenas que a despesa exceda a previsão do diploma nacional, não que limites inferiores sejam criados pelos entes federados.
No entanto, para isso, deve ser observada a autonomia dos poderes e órgãos prevista na Constituição Federal, tais como a do Poder Judiciário, prevista no § 1º do artigo 99.
Ou seja, o projeto apresentado pelo Poder Executivo, como no caso, que inicialmente abrange despesas com pessoal de todos os poderes e órgãos do Estado, poderá ter o seu âmbito de incidência restrito ao próprio Poder Executivo, caso questionada a sua constitucionalidade no STF.
A consequência, assim, será transformar o núcleo principal da propagada "Lei de Responsabilidade Fiscal Estadual” em "Lei de Responsabilidade Fiscal do Poder Executivo Estadual”, justamente aquele que, historicamente, está mais próximo e tem despendido maiores esforços na busca do cumprimento dos limites nas despesas com pessoal.
Se não bastasse a limitação jurídica na previsão do limite nas despesas com pessoal, que poderá redundar em aplicação apenas ao Poder Executivo, a proposta de restrição aos benefícios fiscais também é limitada.
Ocorre que a redação da proposta supõe que o processo de concessão de benefícios fiscais está restrito à edição de decretos, quando a maior parte deles, relativos ao ICMS, depende de aprovação de propostas em convênios no âmbito do Confaz, na forma prevista na alínea "g” do inciso XII do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, em conjunto com a Lei Complementar nº 24/75. Os demais benefícios dependem de lei específica, conforme estabelece o § 6º do art. 150 da Constituição Federal.
Nesse ponto, a aplicação da norma poderá ficar limitada aos benefícios concedidos pelo Poder Executivo com fundamento no art. 58 da Lei Estadual nº 8.820/89, sem amparo em convênios realizados no âmbito do Confaz.
Ou seja, apesar da salutar preocupação da proposta para fortalecer dois dos principais elementos para o equilíbrio fiscal estadual, a limitação das despesas com pessoal e da concessão indiscriminada de benefícios fiscais, trata-se de um projeto com limitações, como já apontado. Mais do que isso, uma série de problemas e dificuldades para o gestor público pode ser gerada por limitações genéricas e abrangentes previstas na norma.
E quais as alternativas existentes para a construção do equilíbrio fiscal?
Muitas poderiam ser apresentadas, cada uma com as suas limitações, mas uma delas é importante destacar: o fortalecimento da Administração Tributária.
No ano de 2007, após a rejeição do Projeto de Lei Complementar nº 390/2007, o Poder Executivo utilizou uma série de alternativas para fortalecer o fisco. Dentre elas, cabe destacar a ágil nomeação de Auditores-Fiscais aprovados em concurso realizado no ano anterior, o encaminhamento de novo concurso para preenchimento das vagas em aberto, o fortalecimento do principal instrumento de gestão da Receita Estadual, o Prêmio de Produtividade e Eficiência (PPE), e, finalmente, a aprovação da primeira Lei Orgânica da Administração Tributária do País, a Lei Complementar nº 13.452/2010.
Os resultados expressivos no crescimento da receita, sem qualquer aumento nas alíquotas de tributos, viabilizaram consistentes avanços na situação fiscal estadual. Tudo isso em conformidade com a própria diretriz constitucional, que enfatiza no inciso XVIII do artigo 37 a precedência dos servidores fiscais sobre os demais setores administrativos.
Além do salutar crescimento da receita, o fortalecimento da atividade do Fisco é uma alternativa que promove a justiça fiscal, levando quem não recolhe os tributos previstos pelo parlamento a realizá-lo, ao invés de onerar ainda mais o contribuinte que regularmente já cumpre as suas obrigações. Se não bastasse tudo isso, ainda há benefício aos demais servidores, consequência da melhoria na saúde financeira do Poder Público.
Em resumo, apesar do mérito no objetivo da proposta apresentada, ela possui uma série de limitações. No entanto já existe uma alternativa testada e aprovada, fundamentada no fortalecimento da Receita Estadual. Afinal, não existe responsabilidade fiscal consistente sem Administração Tributária forte.
Jonas Borghetti
Auditor-fiscal da Receita Estadual