Este artigo, publicado no site da Folha de São Paulo de 3 de março, foi escrito por Nilton Paixão, presidente da Pública - Central do servidor, consultor legislativo da Câmara dos Deputados e mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Num reino muito distante, havia um sistema de previdência pública. Certo dia, o gerente dessa previdência, titularizando uma função pública, passou a se reunir com a concorrência privada a fim de traçar uma estratégia que permitisse a valorização de um importante produto denominado "previdência privada complementar".
Algum tempo depois, descobriu-se que o gerente era próximo dos que queriam apenas lucrar com o novo mercado. Qualquer semelhança com a República Federativa do Brasil não é mera coincidência.
Vamos aos fatos. Marcelo Caetano, secretário de Previdência do Ministério da Fazenda e principal artífice da reforma que o governo federal prepara para o setor, integra o conselho de administração da Brasilprev, entidade privada patrocinadora de planos de previdência complementar -inclusive para servidores públicos, que antes ingressavam em planos geridos por entidades públicas.
A ética e a moralidade condenam esses expedientes nada republicanos, uma vez que existe nítido conflito de interesse em questão.
A isenção esperada da Secretaria de Previdência na elaboração e condução da PEC 287/16, que trata da reforma, está maculada, irremediavelmente deixando em situação vulnerável a primazia do interesse público sobre os particulares.
A função de secretário de Previdência permite acesso a informações privilegiadas, as quais conformam as políticas governamentais sobre o tema. Milhões de brasileiros poderão ser afetados por alterações na Previdência Social.
Pesquisas indicam que 42% da população não têm a mínima noção dos conteúdos em debate; dos que os conhecem, 60% são contrários.
A tragédia social está armada, e o governo alardeia a necessidade de votar com urgência a PEC 287/16. Nenhum país sério aprova reformas previdenciárias a toque de caixa, dado o impacto social de tal empreitada.
A Assembleia Nacional Constituinte brasileira fez clara opção por um Estado social e democrático de Direito. Não pode agora o governo se transformar no exterminador de um sistema de capital indiscutivelmente social, redutor de desigualdades e promotor do bem-estar dos trabalhadores brasileiros.
Toda ação contrária a esse sistema, inclusive, entraria em colisão com inúmeros tratados internacionais ratificados e incorporados ao direito brasileiro.
As funções públicas não podem estar a serviço de interesses estritamente privados, especialmente quando esses interesses alheios ao bem-estar da sociedade dependem de decisões de agente público envolvido.
Na hipótese aqui detalhada, há um relacionamento umbilical entre o órgão gestor do sistema previdenciário brasileiro (secretaria de Previdência) e uma das maiores empresas de previdência privada do país (Brasilprev).
Há limites, e eles foram ultrapassados. A situação torna-se ainda mais grave quando se examinam outros aspectos do caso - agentes do sistema financeiro, por exemplo, devem cifras milionárias à Previdência Social. A dívida de apenas dois bancos públicos chega a R$ 757 milhões.
Também não é coincidência o fato de esses bancos terem produtos comerciais de previdência privada complementar sob as bênçãos da secretaria de Previdência.
É preciso privatizar o privado e estatizar o público, afastando de vez a confusão entre um e outro.
NILTON PAIXÃO é presidente da Pública - Central do Servidor, consultor legislativo da Câmara dos Deputados e mestre em direito pela UFPE - Universidade Federal de Pernambuco