Todos os anos, uma campanha ganha as mídias nacionais. É uma campanha contra os tributos denominada “Dia da Liberdade de Impostos”. A mensagem que vem sendo veiculada, ano após ano, é de que até aquele dia supostamente todos os brasileiros teriam trabalhado apenas para pagar impostos e que só a partir daí é que começariam a trabalhar para seu próprio benefício.
A data escolhida tem relação com o valor estimado da carga tributária que representa um percentual da renda anual. Estranhamente, tanto no ano passado como neste ano, o período escolhido sugere que a carga tributária seria superior a 40% do PIB, quando, de fato, faz mais de dez anos que a carga tributária brasileira não ultrapassa os 34%.
Para quem não costuma ler as entrelinhas, o que eles dizem é que aquilo que pagamos de impostos foi perdido como se nada daquilo que os impostos financiam teria valor para nosso bem-estar. O que não dizem, mas que fica evidente, é que por trás desta campanha contra os impostos, há uma clara apologia do Estado mínimo.
Para compreendermos melhor o que se esconde por trás desta campanha, algumas considerações são necessárias. Em primeiro lugar é preciso ter clareza de que os tributos servem para financiar políticas públicas, como a educação, saúde, segurança, etc, ou seja, tributos são a consequência de um conjunto de direitos que resolvemos garantir. Quando decidimos os direitos, decidimos também a necessidade de providenciar coisas públicas que os possam garantir. São estas coisas públicas que financiamos com tributos. Logo, pagar mais ou menos tributos depende do modelo de Estado que queremos construir.
No Brasil, quase 90% das crianças estudam em escolas públicas. O atendimento do SUS é praticamente universal. O saneamento básico, pavimentação das ruas e estradas, infraestrutura, acesso à justiça, segurança nacional, pesquisa científica, combate a incêndios, sistema carcerário, defesa civil, proteção social, previdência pública, etc. são todas coisas públicas que são financiadas pelos tributos. Ou seja, os cidadãos brasileiros financiam um sistema extremamente complexo de serviços públicos. Não é pouca coisa garantir campanhas de vacinação em todo o território nacional ou bancar mais de 10 milhões de procedimentos de quimioterapia e radioterapia todos os anos. Ainda que haja desvios de parte dos recursos públicos, os tributos que pagamos não são perdidos e significam, para milhões de brasileiros, a única forma de acesso à alimentação, educação e saúde. Do ponto de vista da economia, os gastos sociais e as transferências diretas de renda, como os benefícios previdenciários, por exemplo, constituem um importantíssimo fator de sustentabilidade econômica para inúmeros municípios no interior do Brasil.
Ao se dizer que somente após pagar impostos é que passamos a trabalhar para nosso próprio proveito, nega-se a importância das coisas públicas e do Estado para a qualidade de vida das pessoas. Talvez para uma pequena fatia da população até possa imaginar que não precisa do Estado. Outros podem até perceber no Estado um empecilho aos seus negócios, já que, quanto mais bens públicos temos à disposição menor o espaço para exploração de bens e serviços privados. De fato, quanto mais direitos uma sociedade resolve ter, maior a quantidade dos bens e serviços públicos será demandada e maior será a carga tributária. Assim, um Estado de bem-estar terá mais tributos do que um Estado mínimo.
Mas será que a carga tributária é realmente alta, como dizem? Em primeiro lugar, a carga tributária média não representa 6 meses do ano, como essa campanha quer fazer parecer. Comparando com outros países, percebemos que nossa carga tributária (32,66% do PIB) é inferior à média dos países da OCDE (34%). Vários países capitalistas, com estados de bem-estar consolidados, têm cargas muito maiores do que a nossa, como a França, a Suécia, a Dinamarca, a Alemanha, e outros. Aliás, foram estes os países que serviram de referência aos nossos constituintes em 1988 quando desenharam na nossa Constituição a configuração de um Estado de Bem-Estar.
Seguindo ainda na comparação internacional, é preciso considerar também que, embora não seja tão alta, a carga tributária brasileira é profundamente mal distribuída. Enquanto na OCDE mais de 40% da carga sai de tributos sobre a renda e o patrimônio, no Brasil este percentual fica abaixo de 23% e isso decorre em grande medida porque não tributamos lucros e dividendos desde 1996, diferentemente daqueles países. Já a tributação sobre o consumo reponde, na OCDE, por 32% da arrecadação total enquanto no Brasil representa quase 50%. Esta forma de distribuição da carga, que onera muito mais o consumo do que a renda e patrimônio, faz com que a tributação seja realmente muito mais pesada para os pobres do que para os ricos, proporcionalmente à renda de cada um, já que os pobres gastam praticamente toda sua renda no consumo. Então podemos dizer, sim, que a carga tributária brasileira é alta para alguns, mas muito baixa para outros.
Os que fazem coro às críticas aos impostos costumam alegar também que os serviços públicos brasileiros são muitos ruins para a carga tributária que temos e que outros países com cargas iguais ou menores têm serviços muito melhores. Um argumento muito recorrente é de que se tivéssemos serviços públicos daqueles países poderíamos pagar uma carga tributária igual a deles, o que revela que o sentimento geral é de desejo por serviços públicos melhores e mais efetivos. Aliás esta percepção de que a sociedade clama por melhores serviços públicos fica sempre muito clara nas pesquisas de opinião em que sempre apontam a necessidade de maiores investimentos em saúde, educação, segurança, etc.
Aqui convém esclarecer que a quantidade e qualidade dos serviços públicos não depende tanto da carga tributária, medida como um percentual do PIB, mas sim da arrecadação per capita. O que define a capacidade do Estado para promover políticas públicas é a quantidade de recursos de que dispõe por cidadão. Voltando à comparação internacional, percebemos que o Brasil, com uma carga tributária de 32,66% do PIB consegue arrecadar em torno de US$ 2,9 mil por cidadão, por ano. Este é o recurso que financia saúde, educação, segurança, pagamento da dívida, etc. O Reino Unido, com uma carga muito próxima da nossa, consegue arrecadar em torno de US$ 13 mil, ou seja, quase cinco vezes mais. Os EUA, com carga tributária menor (26% do PIB), arrecadam em torno de US$ 15 mil por cidadão por ano. Portanto, não se pode comparar a qualidade de serviços públicos entre os países sem fazer os devidos ajustes em relação ao tamanho do PIB e da população de cada país, para não chegarmos a conclusões fáceis, mas equivocadas.
A campanha contra os impostos, portanto esconde muita coisa. Reduzir os tributos não melhora a qualidade dos serviços públicos, ao contrário, reduz o Estado, abrindo espaço para exploração de serviços privados e para ampliação dos lucros. Talvez aqui esteja a verdadeira razão desta campanha, já que seus principais patrocinadores estão entre aqueles que são menos afetados pela tributação e que são, por outro lado, os que mais dispõem de instrumentos para não pagar ou pagar menos tributos. Por outro lado, para a maior parte da população o que interessa é a ampliação do Estado de bem-estar, o que pressupõe o crescimento dos gastos sociais e, consequentemente, o aumento da arrecadação per capita.
Criticar simplesmente os impostos e a carga tributária sem discutir o modelo de estado e o nível de bem-estar que dele se espera, é discurso vazio, que só serve para propagar mitos e não para promover a consciência de cidadania.
Não obstante, a injusta distribuição da carga tributária, que onera mais os mais pobres do que os mais ricos, é um problema grave, e que precisa ser enfrentado. Neste contexto, uma reforma tributária solidária torna-se imprescindível, não para reduzir tributos, mas para deslocar parte da carga que incide sobre o consumo para incidir sobre rendas e patrimônio, contribuindo para reduzir as desigualdades e melhorar as condições de desenvolvimento nacional.
Dão Real Pereira dos Santos, diretor de Relações Institucionais do Instituto Justiça Fiscal – IJF.