A relação entre Tesouro Nacional e Banco Central tem se desenrolado em um ciclo vicioso que polariza indevidamente transparência e discricionariedade na gestão dos riscos fiscais e seus respectivos custos para o processo intertemporal de endividamento.
Escolhas, por exemplo, sobre o nível ótimo das reservas internacionais; manejo excepcional ou ordinário de swaps cambiais; volume, remuneração e vigência temporal das operações compromissadas (ou sua substituição por depósitos voluntários); equalização intertemporal dos resultados operacionais do Banco Central e mesmo sobre a taxa básica de juros não são tratadas previamente no ciclo orçamentário, sequer para fins de avaliação prospectiva de riscos fiscais[1]. Tampouco há limites claros para as dívidas consolidada e mobiliária da União, a despeito de previsão constitucional expressa assim o exigir[2].
Como se fora uma relação mutuamente excludente, usualmente é reclamada maior autonomia decisória para o Banco Central, na mesma medida em que se busca manter lacunosa ou conceitualmente frágil a normatividade que deveria lhe fixar balizas para o exercício de tal competência discricionária.
Para a sociedade interessa que qualquer proposta de majoração da liberdade decisória de entes ou autoridades estatais seja acompanhada sempre de maiores transparência e motivação, bem como que haja suficientes limites de como a competência discricionária deve ser exercida para o cumprimento das suas finalidades legais, sob pena de abuso ou desvio de poder.
Na semana passada, grande celeuma se sucedeu com a hipótese de redução[3] em US$ 100 bilhões no estoque das reservas internacionais acumuladas pelo país, cujo custo de carregamento tem implicações sensíveis para o nível da dívida bruta do governo geral. Trata-se de estratégia de seguro cambial (gestão de risco), para uma repercussão fiscal global que supera a casa de um quarto[4] da dívida pública brasileira (gestão de custo).
Segundo Josué Alfredo Pellegrini, em monografia laureada com o 1º lugar no XXII Prêmio do Tesouro Nacional (2017), denominada “Reservas Internacionais: nível adequado, custo fiscal de carregamento e uso no resgate da dívida pública”[5], é possível mensurar — de forma estimada — o custo do excedente de tais reservas da seguinte forma:
Considerando-se o custo de carregamento do total de reservas de 1,2% do PIB projetado para o final de 2018, a redução desse custo anual vai de 0,06% até 0,82% do PIB, a depender do excedente vendido. Por exemplo, considerando-se a métrica dada por 100% do ARA/FMI, o excedente calculado é de US$ 129 bilhões, cuja venda abate imediatamente 9,1% do Dívida Pública do Governo Geral e reduz anualmente o custo de carregamento das reservas em 0,41% do PIB ao ano. Trata-se de montante considerável a julgar pelo tamanho do déficit público primário de todo o setor público, atualmente em cerca de 2,5% do PIB. Seria uma contribuição relevante ao enorme esforço fiscal que o país precisa empreender nos próximos anos.
Ora, tal avaliação (complexo esforço de sintonia fina entre os custos de repercussão fiscal e riscos de desarranjo nas políticas cambial e monetária) precisa se submeter a um transparente e devido processo de motivação, até para que se possa assegurar a aferição regular das finalidades alcançadas, conforme as balizas previamente definidas nos anexos de metas e de riscos fiscais da lei de diretrizes orçamentárias.
Ocorre, contudo, que os balanços trimestrais e as audiências públicas semestrais, a que se referem respectivamente o artigo 7º, parágrafos 2º e 3º e o artigo 9º, parágrafo 5º da Lei de Responsabilidade Fiscal, são previsões normativas de controle posterior[6], sem efetiva capacidade de avaliação preventiva e qualitativa sobre a equação de custos e riscos incorridos pelo Banco Central na condução das políticas cambial, monetária e creditícia.
Ao nosso sentir, falta transparência e motivação na gestão da dívida pública federal, sobretudo na sua interface com as políticas cambial e monetária, razão pela qual propomo-nos, neste texto, ao esforço de arrolar algumas fragilidades para analisar possíveis rotas de aprimoramento do seu regime jurídico.
Um primeiro apontamento diz respeito ao valor total da Dívida Pública Federal (DPF). Com efeito, há grande fragilidade para o atendimento do dever de publicidade no fato de a Secretaria do Tesouro Nacional (STN/MF) divulgar mensalmente o relatório da DPF, dando destaque tão somente à dívida interna e externa de responsabilidade do Tesouro Nacional, mas não incluir ali a Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi) em poder do Banco Central (BC), que é composta de títulos igualmente emitidos pela própria STN/MF.
Tomemos, por exemplo, os dados divulgados em setembro: o relatório[7]aponta uma DPF no valor de R$ 3,8 trilhões, enquanto, na tabela 2.1 anexa a esse mesmo relatório, a DPF total chega a R$ 5,6 trilhões. Há aqui uma divergência de metodologia na divulgação dos dados que implica, em tese, a perda de visibilidade sobre 32% da DPF.
Esse procedimento é justificado pelo fato de a STN/MF entregar aludidos títulos para o BC utilizá-los na execução da política monetária, o que os excluiria da administração do Tesouro. Ora, o BC, ao utilizar títulos para fazer a política monetária, disponibiliza-os para o setor financeiro (por meio das operações compromissadas ou outras estratégias), de modo que tal fato não lhe altera a natureza jurídica. A existência de títulos emitidos pelo Tesouro — ainda que sob responsabilidade de gestão do Banco Central — implica remuneração e prazo de resgate definidos pela STN. Ou seja, eles devem constar como parte integrante da DPF.
Assim, somando-se a DPMFi administrada pela STN/MF com a DPMFi em poder do BC e com a Dívida Pública Federal externa (DPFe) — tanto a mobiliária quanto a contratual — temos que a DPF, em dezembro de 1999, representava 40% do Produto Interno Bruto (PIB) e, em dezembro de 2017, representava 80% do PIB. Sob tal prisma, fato é que, ao longo desses 18 anos, a DPF dobrou proporcionalmente de tamanho.
Da mesma forma, se compararmos essa mesma trajetória como proporção da receita corrente líquida da União (RCL), teremos uma evolução da dívida pública federal, em dezembro de 1999, de um patamar de 3,4 vezes a RCL para, em dezembro de 2017, um montante total equivalente a 7,2 vezes da RCL. A propósito, entendemos que a comparação da dívida consolidada federal com a RCL é a maneira mais adequada para a correta dimensão da sua sustentabilidade e solvabilidade, tratando-se, aliás, do parâmetro adotado pela legislação e, por consequência, pela STN/MF para informar à cidadania a verdadeira dimensão das dívidas dos entes subnacionais, nos moldes da Resolução do Senado 40/2001.
Assim, é imperativo que a STN/MF emita um relatório mais analítico de que o atual abrangendo toda a DPF, estando ou não as operações com os títulos da DPMFi sob a sua administração e passe a compará-la com a RCL, a fim de que a sociedade tenha a real dimensão do estoque de endividamento e do seu custo de gestão intertemporal.
Uma segunda fragilidade diz respeito à forma de contabilização e a apropriação dos custos totais dessa mesma DPF. Para ampliar a capacidade de investimento público, a chamada regra de ouro da Constituição Federal (artigo 167, III) só autoriza, em regra, o endividamento dos entes federados para a realização de despesas de capital. No entanto, a União tem usado recursos oriundos de operações de crédito para custear — ainda que parcialmente — encargos da dívida pública, os quais são um exemplo clássico de despesa corrente.
A estratégia da STN/MF é contabilizar como despesa de capital — em falseada hipótese de amortização — a correção (monetária ou cambial)[8]incidente sobre o estoque da DPF, deduzindo sua diferença do resultado da aplicação de índices de indexação pagos no resgate de títulos da dívida (cujo “excedente” nominal de juros seria considerado despesa corrente).
Assim, como juridicamente não há amparo normativo para essa revisão conceitual, a STN/MF deveria expedir relatório analítico de todos os custos decorrentes da DPF, o que inclui os juros nominais e os juros reais, bem como todos os demais encargos, tanto da dívida mobiliária quanto da dívida contratual.
Um terceiro apontamento (que fecha o presente rol exemplificativo de fragilidades) diz respeito à omissão na fixação de limites para a dívida pública consolidada e mobiliária federal. Não é demasiado lembrar que a Lei de Responsabilidade Fiscal determinara prazo, em seu artigo 30, para que o Senado Federal estabelecesse, por meio de resolução, limites globais de dívida consolidada de todos os entes federados: União, estados, Distrito Federal e municípios e também para que o Congresso editasse lei para fixar limite e regime jurídico da dívida mobiliária federal. Infelizmente nenhuma baliza foi fixada pelo Congresso para a dívida mobiliária da União, tampouco pelo Senado para a dívida consolidada federal.
Diante de tal omissão inconstitucional, reputamos necessária a adoção — em sede de interpretação conforme com a Constituição — de baliza a ser fixada judicial ou administrativamente sobre os limites máximos de endividamento federal. Aqui fazemos questão de insistir no fato de o Tribunal de Contas da União haver considerado, como “fator crítico” para o necessário horizonte de limitação federativamente coordenada do endividamento público, a falta de fixação dos limites para a dívida federal, como depreendemos da leitura do item 9.2 do Acórdão 1084/2018-Pleno, abaixo transcrito:
[...] informar ao Presidente do Senado Federal que a não edição da Lei prevista no art. 48, inciso XIV, e da Resolução de que trata o art. 52, inciso VI, ambos da Constituição da República, para o estabelecimento de limites para os montantes das dívidas mobiliária federal e consolidada da União, assim como da lei que prevê a instituição do conselho de gestão fiscal, constitui fator crítico para a limitação do endividamento público e para a harmonização e a coordenação entre os entes da Federação, comprometendo, notadamente, a efetividade do controle realizado pelo Tribunal de Contas da União com base no art. 59, § 1º, inciso IV, da Lei Complementar 101/2000, e o exercício do controle social sobre o endividamento público e demais limites fiscais.
Tal omissão normativa implica majoração de riscos fiscais, precisamente porque o próprio TCU não consegue promover plenamente sua atribuição de controle, nos moldes do artigo 59 da LRF, para o acompanhamento do endividamento público da União. Daí decorre, por conseguinte, um significativo déficit de transparência e motivação nas estratégias macroeconômicas que impactaram e continuam a impactar a trajetória da dívida pública desde a edição da Lei Complementar 101/2000.
Nesse contexto, a análise sobre as reservas internacionais soa demasiadamente opaca, da mesma forma que não há suficiente clareza sobre os limites das dívidas consolidada e mobiliária federal, sobre conceitos que estipulam o alcance da regra de ouro (juros até o montante da correção monetária são despesa corrente ou despesa de capital?) e sobre a própria metodologia de divulgação dos valores globais da dívida pública federal (não é adequado excluir o saldo dos títulos geridos pelo Banco Central).
Trazer à baila, como feito pelo futuro “superministro da Economia” Paulo Guedes, a hipótese de redução estratégica e paulatina das reservas internacionais é algo que merece debate detido e maduro na comunidade jurídica. Não se trata, ao nosso sentir, de tema interditado na seara do Direito Financeiro, pois traz implicações volumosas sobre os resultados primário e nominal (metas fiscais vinculantes ou meramente programáticas na LDO?), bem como expressa horizonte de riscos (fiscais, cambiais e monetários), cujas escolhas intertemporais precisam ser motivadas e minimamente equacionadas com seus custos.
O que nos assusta nesta quadra da história do constitucionalismo brasileiro é sequer debatermos a legitimidade, a legalidade e a economicidade (nos moldes do artigo 70 da CR/1988) de uma tal escolha estrutural, cujos custos e riscos sequer trafegam previamente pelo ciclo orçamentário, a despeito de imporem tamanho constrangimento ao endividamento público da União.
Conceder autonomia ao Banco Central ou a qualquer outro ente/autoridade nesse cenário de tantas fragilidades e omissões quanto a balizas mínimas é, em suma, falsear o alcance do nosso ordenamento constitucional sobre um dos pilares das finanças públicas, qual seja, a dívida pública e suas complexas interfaces com as políticas cambial, monetária e creditícia.