Após quase dez anos, o IBGE divulgou as primeiras tabelas da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) de 2017-2018, que trata da estrutura de renda e consumo dos brasileiros. Entre as informações que podem ser extraídas da pesquisa, muitas dizem respeito às diversas dimensões e explicações de nossas abissais desigualdades. E uma, em particular, lança luz sobre porque a ampliação das desigualdades de renda desde o início da crise --fruto, sobretudo, de um mercado de trabalho anêmico-- pode estar também limitando as nossas possibilidades de retomada.
Em um artigo publicado em 1945 na reconhecida revista científica Econometrica, o norueguês Trygve Haavelmo, vencedor do Nobel de economia de 1989, expôs pela primeira vez uma ideia relativamente simples: a do multiplicador do orçamento equilibrado. No artigo, Haavelmo demonstra que, como os indivíduos não consomem toda a sua renda, o governo pode estimular a economia mesmo se gastar apenas aquilo que arrecada. Em particular, ao tributar a renda de indivíduos que consomem menos do que 100% do que ganham e gastar essas receitas integralmente com consumo e/ou investimento, o governo injeta mais recursos na economia do que retira, elevando o produto e o emprego. Embora não trate desse caso no artigo, Haavelmo chega a sugerir em uma das passagens que o efeito multiplicador do orçamento equilibrado poderia ser maior do que um se a tributação fosse mais concentrada naqueles que consomem uma fração menor de sua renda.
Ou seja, se o governo tributa mais quem consome menos e gasta com quem consome mais, estimula substancialmente o consumo das famílias e o PIB. Nesse contexto, é importante observar que a mesma POF que mostrou que 73% das famílias brasileiras têm rendimento total menor que R$ 5.724 (a média nacional), apropriando-se de apenas 36,1% da renda nacional, revela que essas famílias são responsáveis por 45% das despesas de consumo na economia. Já os 2,7% das famílias que ganham mais de R$ 23.850 por mês (o que dá em média R$ 7.769 por membro), concentram 19,9% da renda, mas apenas 13% do consumo. Isso porque essas famílias mais ricas gastam apenas 45% de sua renda total com consumo, ante uma média de 69% no conjunto da população --chegando a 80% nas famílias com renda entre R$ 2.862 a R$ 5.724, 88% nas com renda entre R$ 1.908 a R$ 2.862, e mais de 100% nas que ganham abaixo de R$ 1.908.
Assim, em uma economia como a nossa, o multiplicador de Haavelmo de um plano que eleve a tributação no topo da pirâmide e gaste o mesmo valor com a base da pirâmide é bem superior a um. Por outro lado, continuar perseguindo uma agenda de subtributação da renda dos mais ricos --via isenção na tributação de dividendos, Simples, deduções de despesas médicas e educacionais etc.-- e cortando gastos que prejudicam os mais pobres contribui negativamente para o PIB. Isso vale não só para os cortes de benefícios sociais, que atingem diretamente a renda das famílias mais pobres, mas também para investimentos públicos em infraestrutura, que geram emprego e renda para trabalhadores de menor qualificação --construção civil e setores relacionados--, além de afetarem o custo de transporte, por exemplo. Os dados da POF olhados através da lente de Haavelmo fornecem mais uma evidência, portanto, de que estratégias mais equilibradas de ajuste, que contemplem de forma progressiva o lado da tributação em vez de concentrar todo o esforço no corte de despesas, podem representar saídas mais eficazes para o quadro de estagnação desigual que nos assola.