As contradições vão se naturalizando, as opiniões vão prevalecendo sobre o conhecimento; os mitos, sobre as verdades; as crenças, sobre a ciência; e assim vamos nos acostumando até não nos importarmos mais com o absurdo. Negam-se as maiores obviedades, como o aquecimento global, o desmatamento da Amazônia, a existência da ditadura militar, a existência da fome, o aumento do desemprego e outras tantas verdades, com uma naturalidade assustadora.
A negação da ciência, do conhecimento, da arte e da cultura que por um lado protege a mediocridade, por outro, pode servir de anteparo para implementação de um projeto de poder, já que a disputa das ideias e dos projetos foge do campo da racionalidade e se dá apenas no campo das emoções.
A naturalização do contrário permite que, sob um discurso nacionalista e patriótico, se implemente um retrocesso de colonização e de submissão da soberania nacional a interesses estrangeiros; sob o argumento de proteção da liberdade, se promova a censura; em nome do interesse público, se promova a privatização do patrimônio público; motivado na proteção da moral e dos costumes, se promova perseguições ideológicas; para combater uma suposta doutrinação na escola, se promova a cultura da denunciação, e, em nome da segurança, se promova o extermínio de parcelas mais vulneráveis da população.
Muitas coisas, que, por vezes, parecem não fazer muito sentido, podem, na verdade, representar ações deliberadas para produzir um fim determinado. Em março de 2019, em reunião nos EUA, o capitão presidente declarou, a uma plateia de empresários, que o sentido do seu governo não era o de construir coisas para o povo, mas de desconstruir. Esta afirmação, que soa como uma espécie de declaração de guerra, longe de ser apenas uma afirmação retórica, torna compreensível essa onda avassaladora de desmonte das estruturas sociais do país. O Estado social brasileiro e todos os que o defendem passaram a ser vistos como inimigos que precisam ser destruídos, aliás, na mesma ocasião o militar presidente afirmou que o Brasil caminhava para o comunismo e que seu sonho era libertar o país da ideologia “nefasta da esquerda” (O Globo, 18/03/2019).
As contradições aparecem em várias medidas propostas. A MP 881, de 2019, que promove a denominada liberdade econômica, a redução das normas reguladoras de segurança para os trabalhadores e a promessa de revisão do conceito de trabalho escravo, por exemplo, são medidas que propõem maior liberdade para explorar, mas que trazem em seu bojo o cerceamento de liberdade, para a maior parte da sociedade brasileira, para defender-se da exploração. Ao mesmo tempo que atribui à redução dos gastos públicos a solução para a crise econômica e propõe retirar da sociedade mais de 1 trilhão de reais, com a reforma da Previdência, promove e comemora a liberação de recursos públicos do FGTS do PIS e PASEP, para injetar recursos na atividade econômica.
Desconstruir virou palavra de ordem e é nesta onda que as reformas vão se acumulando, uma após a outra. A próxima reforma será sempre a última e a única tábua de salvação para o país. Essa narrativa vem sendo repetida desde o final do governo Temer: Se não congelar os gastos, o país quebra; sem reformar a legislação trabalhista, o país quebra; sem reformar previdência social, o país quebra; a reforma tributária é para resolver tudo o que as outras reformas não conseguiram; agora, mais recentemente, será a reforma administrativa que irá salvar o país da falência; depois, será a venda de todas as estatais, do patrimônio público, e a entrega de todas as reservas de recursos naturais a empresas estrangeiras para evitar que o país quebre[2]. Enfileiradas, as diversas reformas só têm em comum o desmonte das estruturas do Estado e a retirada dos direitos sociais. Enquanto isso, o país vai ficando numa situação cada vez mais dramática, o desemprego crescendo e a economia quase estagnada.
Os reais objetivos daquilo que se propõe estão sempre ocultos, mas são sistematicamente distintos daqueles que são apresentados. É necessário perceber que o projeto em curso é realmente o de desconstrução, que significa destruição do que está aí, com a finalidade de reduzir drasticamente a parcela da renda nacional, que tem sido capturada pelo Estado e pelo povo, para beneficiar interesses de alguns setores econômicos e do capital financeiro. O objetivo oculto, não é o crescimento econômico, mas, sim, garantir que o resultado de qualquer crescimento no futuro fique cada vez mais concentrado nas mãos de poucos beneficiários. Para isto é que importa congelar gastos públicos, desvincular receitas, revogar a garantia de ganho real para o salário mínimo, reduzir salários e quebrar a estabilidade do servidor público, privatizar a previdência pública, privatizar a saúde e a educação e vender as empresas públicas, especialmente aquelas de natureza estratégica, como do setor financeiro e energético, entre outras medidas nefastas aos interesses da população.
O projeto de Estado mínimo, defendido pelo ministro da Economia, é que determina este processo acelerado de desocupação do Estado, de seu próprio povo, para que possa ser totalmente ocupado por interesses privados, cujos representantes já estão estrategicamente colocados em postos chaves do próprio governo. Não é novidade que o ministro Guedes tem se apresentado em fóruns internacionais como uma espécie de leiloeiro das coisas públicas brasileiras. Em março de 2019, apresentando o seu secretário Especial de Desestatização e Desinvestimento a empresários estadunidenses, em Dallas, afirmou: “ele vai vender tudo o que nós temos”[3].
Na minimização do Estado, são as conquistas da sociedade, como os direitos trabalhistas, a qualidade do meio ambiente, a universalização da saúde e da educação, a moradia, a erradicação de doenças, a previdência social, a redução da mortalidade infantil, a redução da pobreza e da marginalização, e tantas outras conquistas, que estão sendo seriamente ameaçados. A Constituição Federal de 1988 vem sendo destruída em sua parte mais essencial, que são as bases de sustentação do próprio Estado de Bem-estar. Está cada vez mais claro que o que se pretende desconstruir é o Estado que a Constituição instituiu. Não é demais lembrar as palavras de Ulysses Guimarães, sobre a Constituição: “Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria”[4]
A destruição, como estratégia, atinge diversas áreas. Na economia, vem pela liquidação total das coisas do Estado, conduzida pelo bilionário Salim Mattar, que, segundo o Ministro da Economia, “privatizará tudo o que puder”. Vender a Petrobrás, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica, os Correios, o Serpro, a Dataprev, por exemplo, é desconstruir parte importante da história econômica do país, além de abdicar de instrumentos estratégicos para nossa segurança energética e financeira, sem falar de fontes relevantes de recursos públicos, pois são, na maioria, empresas públicas altamente lucrativas.
Na educação e cultura, a desconstrução se dá pela intervenção direta, mediante o cerceamento à liberdade de expressão, negação da identidade nacional e da diversidade. A desconstrução do futuro se dá pelo cerceamento ao conhecimento e à criação, e pelo borramento da história, e negação das evidências mais objetivas, como, por exemplo, a de que houve ditadura militar e tortura no Brasil. A desconstrução geral visa também apagar a memória coletiva e fazer com que dogmas e mitos sejam elevados à condição de disciplinas orientadoras dos comportamentos.
A desconstrução da cultura da tolerância e do respeito à diversidade e da cultura da paz, que tanto identifica o povo brasileiro, faz parte deste projeto em que o fundamentalismo religioso e moralista surge de braços dados com radicalismos violentos de extrema direita, negando as regras mais básicas de coesão social, que são a tolerância e o respeito ao diferente. Neste cenário perigoso que vai surgindo não há adversários, mas sim inimigos. O presidente ofende estrangeiros, deprecia os diferentes, humilha opositores, criminaliza movimentos sociais, fomenta o ódio e a xenofobia, elogia e homenageia bandidos, banaliza crimes, ridiculariza vítimas e se identifica sempre com quem oprime numa clara sinalização de que a desconstrução da coesão social também faz parte do projeto.
Portanto, é preciso compreender qual é o jogo, quais são os reais interesses que estão sendo disputados e quais são as armas que estão sendo usadas, antes que seja tarde demais e já não reste mais direitos a proteger. A Constituição Federal, nestes seus 31 anos de existência, nunca esteve tão ameaçada como agora. A desconstrução, como projeto explícito de ação, exige da sociedade resistência, determinação e disposição para defender o pacto social de 1988, que consta gravado já no Preâmbulo da Constituição Federal, de instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.