Seguindo na mesma linha de raciocínio do último artigo, gostaria aqui de me aprofundar um pouco mais sobre essa opção política pela desigualdade social no Brasil, pois é disso que se trata, de uma opção política. Se bastariam 122 bilhões de reais por ano para erradicar totalmente a pobreza e a extrema pobreza, como nos informa o IBGE, por que não fazemos isso e cumprimos o que determina a Constituição Federal? Dizer que se trata de uma opção política não minimiza de forma alguma o problema, pelo contrário, talvez esteja aí, justamente, a grande dificuldade para o enfrentamento efetivo desta questão.
A opção pela erradicação da pobreza e pela redução das desigualdades implica, necessariamente, o enfrentamento de outro problema, de igual envergadura: a monumental concentração de renda e riqueza em nosso país. Portanto, trata-se encarar o desafio de promover uma redistribuição mais justa da riqueza produzida, o que só será possível com uma grande modificação da correlação de forças, hoje francamente favorável às classes mais ricas do país.
Estamos falando de um montante de recursos que representa apenas 1,8% do PIB. Ou seja, bastaria aumentar a nossa carga tributária, dos atuais 32,4% do PIB, para cerca de 34,2% e constituir um fundo destinado à erradicação da pobreza para que, aproximadamente, 55 milhões de pessoas possam sair debaixo da linha da pobreza, reduzindo-se, com isso, e de forma bastante substancial, a desigualdade social que tanto nos envergonha.
Ainda que a desigualdade seja um fenômeno muito mais complexo e envolve, além da renda, diversos outros aspectos, como questões de gênero, raciais, sociais, de acesso ao ensino, por exemplo, a desigualdade de renda constitui um fator bastante relevante e que potencializa todas as demais. Mas a desigualdade de renda pode ser enfrentada de forma imediata com medidas de natureza fiscal, permitindo que milhões de pessoas possam acessar condições mais dignas de vida.
Já há consenso entre os especialistas de que a desigualdade social não é ruim apenas do ponto de vista de justiça e de coesão social, mas também para a sustentabilidade da própria economia. Segundo Christiane Lagarde (presidente do FMI): “se há excesso de desigualdade, isso é contraprodutivo para o crescimento sustentável ao qual os membros do G20 aspiram”. Investir na erradicação da pobreza, tendo em vista a alta propensão ao consumo destas camadas da sociedade, constitui, sem dúvida, medida altamente eficaz de promoção da atividade econômica, o que por si só, amplia a geração de empregos e ajuda a reduzir a desigualdade social.
No entanto, a desigualdade social no Brasil vem crescendo de forma acentuada, o que, em parte, pode ser atribuído à crise econômica, mas, de outra, decorre de medidas governamentais de cortes insistentes nos gastos sociais, adotadas nos últimos anos. Chega a ser assustador que, depois de termos vivido um período de mais de uma década com a desigualdade sendo reduzida gradativamente [1], ela volte a crescer ]neste ritmo tão acelerado. Segundo Márcio Pochmann (2019), no período de 2014 a 2019, o índice de Gini [2] já cresceu mais de 6%, saltando de 0,49 para 0,63, o que coincide com crescimento do número de pessoas que passaram a viver abaixo da linha da pobreza e da extrema pobreza. Pochmann afirma ainda que estes últimos cinco anos são o período de maior crescimento de desigualdade social observado, desde 1960.
Por outro lado, e na contramão do que acontece no mundo inteiro, apesar da crise econômica, a riqueza dos bilionários brasileiros aumentou 1,7%, saltando de 176,7 bilhões de dólares para 179,7 bilhões de dólares, de 2017 a 2018, enquanto nosso PIB teve um crescimento de apenas 1,1%. No resto do mundo, neste mesmo período, os bilionários tiveram redução em seu patrimônio. Em 2018, os quatro maiores bancos, que operam no Brasil, bateram recordes históricos de lucros, registrando um resultado de 69 bilhões de reais, 19,88% maior do que o registrado em 2017.
O que se acumula de um lado é o que falta do outro. O crescimento da riqueza de alguns em nível superior ao crescimento do PIB significa que muita gente, na base da pirâmide social, terá sua posição econômica rebaixada. Em períodos de baixo ou insignificante crescimento econômico, o aumento das fortunas é uma das principais causas do aumento da pobreza e da miséria. A precarização da vida de uma multidão de pessoas é o preço pago pelo aumento das riquezas nas mãos de poucos privilegiados.
Segundo o IBGE, em 2017, já tínhamos quase 55 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, 2 milhões a mais do que no ano anterior. Da mesma forma, cresceu o número de pessoas vivendo abaixo da linha da extrema pobreza, de 13,2 milhões para 15,2 milhões de pessoas.
É sempre importante reafirmar os objetivos traçados pelos constituintes para a nossa República, em 1988. O Artigo 3º, da Constituição Federal é muito claro quando afirma nosso compromisso, enquanto Estado social, de erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades. Aliás, este compromisso está plenamente alinhado com as metas estabelecidas na Agenda 2030, que foi adotada, em 2015, por 193 países membros da ONU, e que tem, como primeiro objetivo: “acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares”[3].
A implementação de medidas com vistas a cumprir tal objetivo cabe à sociedade, por meio de sua representação política e é preciso encontrar os meios para isso. A necessidade de buscar recursos (1,8% do PIB) para cumprir este dispositivo constitucional impõe-nos o desafio de ampliar a arrecadação tributária. São diversas as formas que nos permitem alcançar esta meta, mas, em primeiro lugar, precisamos enfrentar, com muita coragem, este dogma, que se repete como um mantra, de que a carga tributária já estaria no limite.
Muitas medidas podem ser adotadas, sem alteração do atual sistema tributário. Combater a sonegação (estimada em cerca de 10% do PIB), implementar medidas que viabilizam a cobrança da dívida ativa (quase 50% do PIB), revisão das renúncias fiscais (mais de 12% do PIB), criação de mecanismos que permitam maiores garantias para a cobrança dos tributos, criminalização das condutas elisivas, dentre outras. Além dessas, é possível promover mudanças estruturais no sistema tributário criando fontes específicas vinculadas à criação de um fundo para erradicação da pobreza e da marginalização.
Desde 1988, está autorizada na Constituição Federal a criação de Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), mas que, até hoje, não se implementou. Além disso, temos um tributo totalmente subutilizado que é o Imposto sobre Propriedade Territorial Rural (ITR). Segundo o estudo coordenado pela ANFIP [4] e FENAFISCO [5] (2018 p. 88 [6]), a criação do IGF, a adoção de critérios mais realistas para valoração da base de cálculo do ITR, a criação de uma Contribuição Social sobre Altas Rendas das Pessoas Físicas (CSPF) e a criação de uma Contribuição Social sobre Movimentações Financeiras (CSMF) produziria um aumento de arrecadação de 1,93% do PIB.
Ou seja, a adoção destas quatro medidas, que afetariam principalmente a renda e o patrimônio dos mais ricos, vinculando-se o acréscimo de arrecadação, delas decorrente, à constituição de um fundo nacional, seria possível erradicar totalmente a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais. Para isso, basta que façamos esta urgente opção política de cumprir a Constituição Federal, antes que ela seja revogada e substituída por outra menos social, o que, aliás, já começa a ser cogitado nos círculos políticos, mas isso é assunto para outro artigo.