Artigos e Apresentações
O velho truque do remédio amargo
Guilherme Cassel/Sul 21
Sempre que um dos partidos da elite (PSDB, PMDB, PP, DEM e outros menores) está no governo, a história se repete: com a cooperação ativa de setores da grande mídia, anunciam que a situação das finanças públicas é caótica e que serão necessárias medidas duras para enfrentá-la. É o velho golpe do remédio amargo. Repetem em coro que não há saídas para a crise a não ser a aplicação, geralmente em altas doses, do tal remédio amargo. E, é claro, este tal remédio é sempre receitado apenas para os trabalhadores, como se fossem eles os portadores da tal doença. A dosagem é sempre a mesma, assim como a fórmula do milagroso medicamento: menos salário e menos direitos. Aos grandes nunca é destinada sequer uma dose homeopática do tal medicamento.
O que nunca se fala é que esta receita nunca resolveu problema algum, nem por aqui nem em qualquer outro lugar no mundo. Sempre fracassou. O ajuste das finanças feito única e exclusivamente pela parte da despesa gera só mais pobreza, mais insegurança, menos consumo das famílias e menos crescimento. É uma falácia; um truque barato para concentrar ainda mais a renda e proteger os ganhos especulativos do capital financeiro.
Mas alguém de boa-fé ainda poderá argumentar que, de fato, existe um déficit real e crescente nas contas públicas, que as receitas tendem a ser cada vez mais escassas enquanto as despesas crescem vertiginosamente e que, logo, o problema não tem fácil solução. É verdade. Pura verdade. Não existe solução fácil, mas a solução mais eficaz não passa apenas pelo corte das despesas e sim, principalmente, pelo crescimento da receita.
Virou clichê entre nós a máxima de que o Brasil possui uma alta carga tributária, o que não se fala, no entanto, é que esta carga é extremamente injusta e que, por ser injusta a estrutura tributária acaba arrecadando pouco e mal. Nosso sistema tributário taxa quem trabalha e tem baixa renda e passa a mão na cabeça dos grandes proprietários e especuladores financeiros. Por aqui ainda não temos Imposto Sobre Grandes Fortunas, mal tributamos grandes heranças, fazemos de conta que não existe o ITR e evitamos taxar ganhos de capitais. E nem vamos falar na Lei Kandir. Mais: nossas alíquotas de Imposto de Renda nem de perto refletem as desigualdades que reinam na nossa sociedade. Isto para citar alguns exemplos e responder de forma clara àqueles que sempre argumentam que é preciso dizer de onde vai sair o dinheiro.
Uma outra ironia é o argumento sempre presente de que “é muito difícil mexer na estrutura tributária brasileira, que isso significa enfrentar interesses sempre muito poderosos”. Este é o ponto: para não incomodar os ricos e poderosos, tira-se salário e direitos daqueles que tem menos poder, daqueles que trabalham.
O pacote de medidas que o governador Leite acaba de encaminhar para a Assembleia Legislativa é mais um capítulo execrável deste Truque do Remédio Amargo. Não existe fala do governo reivindicando uma outra estrutura tributária. Não há uma medida sequer que busque a qualificação dos serviços de fiscalização e cobrança, pelo contrário, o que existe é o afago do governo aos sonegadores com um programa de renegociação de dívidas que perdoa até noventa por cento de juros e multas. Não há nenhum gesto eficiente para recuperar as perdas do Rio Grande pela Lei Kandir. Não se fala em rever algumas isenções fiscais. Não, nada disso, toda energia e “coragem” do governador estão dirigidas para cortar salários e direitos do funcionalismo público. Ao mesmo tempo em que abana dócil e obediente para Guedes e Bolsonaro (a quem, aliás, apoiou na eleição), Leite encaminha para a Assembleia um conjunto de medidas que ataca os trabalhadores e fere de morte a educação pública do Rio Grande.
Já tivemos maus governos, mas agora parece que entramos na fase dos governos maus. Sim, porque é maldade, é pura crueldade o que Leite propõe, por exemplo, para o magistério. Propor que um profissional da educação, professor ou professora, ao fim de mais de quase três décadas de trabalho, com mestrado e doutorado e no nível final de carreira se aposente com pouco mais de três mil reais é de um escárnio, uma agressão gratuita, um gesto de absoluta desumanidade. Mas não se trata apenas de uma crueldade contra os professores, é bem mais do que isso: é uma crueldade com os mais pobres, com a maioria da população que não tem como mandar seus filhos para a escola privada e terá que encaminhá-los, no futuro próximo, para escolas de pior qualidade. Trata-se de uma maneira simples e cínica de condenar os pobres a um ensino menos qualificado e com isso perpetuar as desigualdades.
É preciso evitar que o pacote de Leite prospere. É um conjunto de medidas que nada resolve e só trará menos renda e direitos para quem trabalha. Trata-se de um pacote de crueldades inominável que fere de morte a educação pública do Rio Grande do Sul e precariza o serviço público. Não precisamos mais ser cobaias do velho truque do remédio amargo. A doença que há tempos vem ferindo as finanças públicas em todos os níveis precisa ser atacada pelo lado da receita, com um pacto federativo mais equilibrado e com uma estrutura tributária mais justa.
(*) Auditor Fiscal do Tesouro do Estado/RS, aposentado. Foi ministro do Desenvolvimento Agrário (2005 – 2010)