Talvez interesse ao Brasil, e àqueles que se importam com as políticas de resposta à crise econômica, conhecer a experiência europeia. A política de austeridade entre 2008 e 2015 foi um fracasso econômico e um desastre político para o projeto europeu. A melhor fonte de evidência talvez seja a comparação entre a estratégia americana e a política europeia no combate à crise. Os Estados Unidos estancaram mais rapidamente a crise financeira e recuperaram mais rapidamente o emprego e o crescimento. A diferença, no essencial, residiu no fato de os Estados Unidos terem seguido desde o início uma política monetária expansionista, enquanto a Europa abraçou uma política de austeridade orçamentária.
Quando o continente supera essa fase, eis que surge uma nova falácia: a recuperação econômica deve-se às políticas de restrição
Talvez interesse ao Brasil, e àqueles que se importam com as políticas de resposta à crise econômica, conhecer a experiência europeia. A política de austeridade entre 2008 e 2015 foi um fracasso econômico e um desastre político para o projeto europeu. A melhor fonte de evidência talvez seja a comparação entre a estratégia americana e a política europeia no combate à crise. Os Estados Unidos estancaram mais rapidamente a crise financeira e recuperaram mais rapidamente o emprego e o crescimento. A diferença, no essencial, residiu no fato de os Estados Unidos terem seguido desde o início uma política monetária expansionista, enquanto a Europa abraçou uma política de austeridade orçamentária.
Para ser mais concreto, os primeiros responderam à crise com o quantitative easing, enquanto a Europa se entregava à contenção dos gastos estatais e à retórica moral da necessidade de punir os Estados membros gastadores. Em 2015, em clima de pânico, o Banco Central Europeu finalmente adotou, contra o voto da Alemanha, o mesmo programa que os Estados Unidos estavam a aplicar desde 2008. Eis, portanto, a dimensão do erro – seis anos de atraso, seis anos de equívoco, seis anos de retrocesso.
Na verdade, a austeridade sempre se assentou numa mistificação ideológica. A direita política – e os seus divulgadores na mídia – conseguiram a inacreditável proeza de virar a história da crise de cabeça para baixo. Uma crise que teve origem comprovada nos mercados desregulados foi transformada numa crise centrada nas despesas estatais. Uns meses depois do início da crise, a ganância dos mercados financeiros estava esquecida e a discussão política centrada na sustentabilidade dos sistemas de proteção social e no excesso de gastos do Estado. O problema passou a ser o Estado, não os mercados.
O Estado e a necessidade de reformas, não as reformas no sentido amplo, mas as reformas deles: menos proteção social e menos proteção no trabalho. O discurso em nada difere do que se ouve hoje no espaço público brasileiro. Nada de reformas no sentido de maior investimento em educação, ou em ciência, ou nas infraestruturas, ou na coesão ou igualdade social. Não, o demônio está no Estado. O discurso que fala das reformas não passa de um ajuste de contas histórico da direita a propósito do Estado social.
O segundo golpe de mágica foi convencer-nos de que não foram as crises econômicas que provocaram os déficits estatais, mas estes que provocaram a crise. Não há muito a dizer sobre isto a não ser que a falsidade é óbvia. O manifesto engano passou, no entanto, a ser discurso oficial. Na prática, fizeram o mal e a cara feia. O mercado financeiro provocou uma forte crise que teve como consequência o aumento dos déficits estatais. No fim, os mercados que estiveram na origem de tudo acabam a responsabilizar os Estados pela crise que eles próprios provocaram. Esta é talvez a mais descarada patranha que foi seguida pela direita e – surpresa – contou também com o silêncio de grande parte da esquerda europeia.
Finalmente, vem ainda o embuste pós-crise. Agora que a austeridade passou à história, uma nova retórica parece desenvolver-se: a recuperação europeia só foi possível graças à austeridade. O que parecia impossível está de novo debaixo dos nossos olhos: após comprovados empiricamente os erros da política econômica, nomeadamente, como me referi, quando comparada com os resultados americanos, agora que foi ultrapassado o bloqueio ideológico que obrigou à irresponsável inércia do Banco Central Europeu, agora que estão evidentes os desastrosos efeitos sociais e políticos de uma política econômica errada e conduzida com brutal cegueira, eis que começa então uma nova narrativa.
O progresso que agora sentimos deve-se à austeridade. Como habitualmente, a base de tal falcatrua intelectual remete para a dimensão moral: não há salvação sem sofrimento, a austeridade foi redentora. Se agora estamos bem é porque o sacrifício valeu a pena.
Não há nisto a mais leve ponta de verdade. A ideia de que a austeridade foi a salvação é completamente falsa. Não, não foi a austeridade que permitiu a recuperação, mas o fim dela. Malgrado todas as evidências em contrário, esta mentira continua a fazer o seu caminho para a satisfação da burocracia europeia que a promoveu, da direita que a impôs politicamente, e até de uma certa esquerda que foi cúmplice silenciosa com tudo o que se passou. O exemplo português é bom testemunho. A recuperação iniciou-se mal, o governo mudou e a austeridade chegou ao fim.