O governo Jair Bolsonaro autorizou empresas a suspenderem contratos com os empregados por quatro meses, mandando-os fazer cursos on-line em casa, sem salário. A justificativa - "preservação do emprego e da renda" - carece de lógica uma vez que a proposta deixa os trabalhadores sem dinheiro durante o período de isolamento social por conta do coronavírus.
Com isso, o governo vai transferindo, principalmente, aos empregados, mas também a empregadores, o ônus da crise econômica decorrente da crise sanitária. E mostrando que tenta evitar uma explosão nominal das taxas de desemprego trocando "demitidos" por "suspensos". Um eufemismo útil para mandatários, péssimo para cidadãos. Pois esses trabalhadores ficarão em casa sem salários e sem os recursos de rescisão, sob esperança de voltarem a um emprego que não sabem se estará lá, porque não há estabilidade garantida. É importantíssima a sustentabilidade dos micro e pequenos negócios, mas esse tipo de saída - sem a injeção de recursos públicos para manutenção salarial - acaba não sendo bom m para empregados, nem para patrões.
A decisão, publicada neste domingo (22), via Medida Provisória 927/2020, não prevê que os trabalhadores afetados tenham direito a receber seguro-desemprego. O ministro Paulo Guedes pode ainda anunciar algo nesse sentido, considerando que aquilo que chama de pacote anticrise é composto por medidas pensadas, na última hora, que vão surgindo à medida em que o governo é cobrado. Mas a opção por ser um "Robin Hood às avessas" já não será esquecida.
Desde que a crise começou, o presidente da República e seu ministro da Economia não defenderam a possibilidade de criar um imposto para grandes fortunas e grandes heranças ou taxar dividendos recebidos pelos super-ricos, que - aliás - pagam menos imposto no Brasil. Pelo contrário, anunciou medidas, como o vale-merreca de R$ 200,00 para trabalhadores informais e bateu tambor ao anunciar que acabaria com a fila do Bolsa Família que o próprio governo criou. Uma lasca da renda e do patrimônio não faria falta a bilionários ou multimilionários, mas poderia garantir proteção aos trabalhadores e ajudar micro e pequenas empresas a sobreviver à crise.
As regras já estão valendo e o Congresso Nacional tem 120 dias para votá-las ou perdem a validade. Mas, até lá, boa parte dos trabalhadores já terão passado pelo pior do isolamento do coronavírus. No artigo 18 da MP, o governo afirma que a ideia da suspensão de contrato é permitir a "participação do empregado em curso ou programa de qualificação profissional não presencial oferecido pelo empregador, diretamente ou por meio de entidades responsáveis pela qualificação".
Traduzindo: mandar milhões de pessoas para casa sem salário, apenas com benefícios voluntários da empresa (como plano de saúde) e a chance de fazer um curso on-line qualquer para evitar demissões. Preservar empregos é importante, mas vidas também - e como preservar vida sem remuneração? O mais irônico é que talvez o cidadão nem consiga completar o tal curso uma vez que não terá dinheiro para pagar a conta da internet. A MP 927/2020 diz que isso deverá ser negociado entre o patrão e o empregado individualmente ou em grupo, mas não precisa passar por acordo ou convenção coletiva. Desconectados de sua categoria de trabalhadores, esses indivíduos terão o único poder de dizer "sim, senh(a)" para os empregadores em nome da esperança de voltar ao emprego. O pacote de medidas vai mais fundo e parece tripudiar da situação. Afirma que "o empregador poderá conceder ao empregado ajuda compensatória mensal, sem natureza salarial, durante o período de suspensão contratual, com valor definido livremente entre empregado e empregador, via negociação individual". "Poderá." "Valor definido livremente." "Negociação individual." Faltou apenas o "kkkkkk" no fim do parágrafo.
O artigo 18 ainda diz em seu último parágrafo que "não haverá concessão de bolsa-qualificação no âmbito da suspensão de contrato de trabalho para qualificação do trabalhador", o que, normalmente, é pago pelo governo. Pacote de maldades A Medida Provisória 927/2020 também afirma que, para evitar a demissão por conta da crise trazida pelo coronavírus, "o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito" passando por cima da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), de normas e acordos coletivos. Ou seja, o impacto do coronavírus não será apenas nos pulmões das pessoas, mas naquele patamar mínimo de saúde e segurança aos trabalhadores. Durante o estado de calamida a MP permite, mediante a acordo individual, que estabelecimentos de saúde prorroguem as jornadas de trabalho, mesmo nos casos de "atividades insalubres" e das jornadas de 12 horas de trabalho por 36h de descanso. Com isso, a medida quer ampliar a quantidade de médicos e profissionais de saúde à disposição. Considerando que eles estarão combatendo uma guerra contra a Covid-19, trabalhando em um ambiente de caos sanitário e nos seus limites físicos e psicológicos, a medida potencializa os riscos para a saúde de quem está protegendo a nossa saúde. A questão é que, para muita gente, deixar de assinar um acordo como esse não é uma opção.
A MP afirma que, pelo prazo de 180 dias, os auditores fiscais do trabalho apenas irão "orientar" os empregadores que cometerem infração. -Exceções foram feitas à falta de registro (desde que a partir de denúncia), a situações de grande e iminente risco, acidentes de trabalho fatal, trabalho infantil e trabalho escravo. Se os fiscais encontrarem qualquer outra coisa problemática, vão poder apenas dar conselhos.
O prazo elástico de seis meses significa que o governo está dando carta branca aos empresários que operam à margem da lei para que possam atravessar a crise da forma que for necessário (passando por cima da saúde e segurança dos empregados). E dizendo a eles que, no momento de retomada, não precisam se preocupar com um "incômodo", como a fiscalização. Ou seja, os fins justificam os meios.
Há mais medidas que aqui não estão listadas. Mas diante de tantas alterações, pergunta-se se o governo está fazendo mudanças para garantir empregos ou realizando um test drive de uma nova Reforma Trabalhista.
A resposta a isso é irrelevante porque está à sombra de algo mais urgente: salvar vidas. Outros países mais avessos a investimento público que o nosso estão garantindo uma remuneração decente para que trabalhadores formais e informais fiquem tranquilos em isolamento em suas casas. No Brasil, após ofertarem um vale-merreca de 200 mangos aos informais, propõe-se empregado sem salário e fiscalização sem multa.
O que até faz sentido. Porque somos um país sem governo.