A crise do Covid-19 escancarou a falência da economia, enquanto ciência destinada a ajustar os recursos às necessidades da melhor forma possível. A indecência da desigualdade social brutal de um lado e a exacerbada concentração de renda do outro, além dos danos ambientais desse modelo econômico que desrespeita completamente a natureza são incontestáveis.
Um vírus derrubou as teses pregadas por famosos da área econômica nos últimos tempos, de austeridade e ajuste fiscal, privatizações em massa, encolhimento do Estado, política monetária suicida (juros elevados e restrição da base monetária por meio do abuso das “Operações Compromissadas” pelo Banco Central), tudo para privilegiar o pagamento da chamada dívida pública que nunca foi auditada.
Alguns que aprovaram o fim da aposentadoria por idade e até outro dia defendiam a redução do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para R$ 400,00 e danos para a aposentadoria dos trabalhadores rurais, de repente passaram a defender os pobres, sob alegação de situação atípica. Como se não fosse atípico um país tão rico como o Brasil destinar cerca de R$ 1 trilhão, todo ano, para os gastos financeiros com a dívida federal, enquanto a maioria da população não tem sequer saneamento básico!
Alguns economistas ainda se iludem alegando que a dívida não seria um problema no Brasil, pois em tese ela poderia ser paga em moeda nacional que o próprio país emite! Quem diz isso ignora o art. 164 da Constituição Federal e não tem acompanhado o movimento da política monetária do Banco Central (BC).
Além de já ter tentado se desfazer de sua prerrogativa exclusiva de emitir a nossa moeda, já que tentou privatizar a Casa da Moeda , o BC tem aceito o depósito voluntário de toda a sobra de caixa dos bancos. Isto é, todo recurso que os bancos não conseguem emprestar e ainda gasta para remunerar diariamente esses bancos.
Ou seja, se emitir mais moeda, essa moeda terá que ser direcionada aos bancos e o BC irá aceitar mais depósitos voluntários e gastar mais ainda com a sua remuneração. Para mudar isso, tem que enfrentar o Sistema da Dívida!
A crise do Covid-19 tem mostrado a falácia da privatização da saúde, escancarando a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) para garantir a assistência à saúde de forma pública, universal e coordenada.
Escancarou também a importância dos investimentos em Ciência e Tecnologia, área que foi quase extinta nos últimos anos devido aos sucessivos cortes de recursos.
Essas áreas fundamentais – assim como a Educação e toda a estrutura de funcionamento do Estado – têm sofrido cortes insanos para que seja cumprido o teto instituído pela Emenda Constitucional 95, que estabeleceu teto para todos os gastos sociais e com a manutenção do Estado.
Está fora do teto, sem controle ou limite algum, os gastos com a privilegiada dívida pública e com as novas estatais que estão sendo criadas para operar o esquema da chamada Securitização de Créditos Públicos. Em resumo, a EC 95 foi uma medida destinada a segurar todos os demais gastos públicos para que sobrem mais recursos para a dívida nunca auditada!
Ao longo de 20 anos de investigação da dívida pública federal (externa e interna), dos estados e municípios, além da dívida de outros países latino-americanos e europeus, a Auditoria Cidadã da Dívida tem provado o funcionamento de diversos mecanismos fraudulentos que geram dívida pública: o seu estoque aumenta, mas os recursos não entram nos cofres públicos e vazam diretamente para investidores privilegiados, principalmente bancos. A esse funcionamento distorcido do endividamento público denominamos “Sistema da Dívida”.
Em geral, os economistas têm dificuldade de entender isso, porque foram ensinados a enxergar “dívida” como se fosse “moeda” que de fato estaria sendo entregue aos cofres públicos.
Na prática, esse funcionamento regular do processo de endividamento público é gota d’água no oceano! Por isso há tanta rejeição à proposta de auditoria, ferramenta que prova com dados e documentos o funcionamento dos mecanismos que geram “dívida” e desmonta a falácia dos modelos teóricos ensinados nas universidades.
Alguns economistas dizem que para resolver o problema fiscal brasileiro bastaria reduzir os juros. De fato, o volume de juros pagos pelo Brasil é outro escândalo que precisa ser auditado, desde a própria definição da Selic até a contabilização de grande parte dos juros como se fosse amortização.
Ademais, não seria suficiente reduzir o patamar de juros se o Sistema da Dívida continuar operando e produzindo cada vez mais “dívida”. Os dados mostram que o modelo está errado, pois quanto mais pagamos mais devemos!
Apesar das “Amortizações” gigantes, a dívida cresce, pois grande parte dos juros são contabilizados como “amortizações”, burlando-se o disposto no Art. 167,III, da Constituição Federal .
Reparem que, a cada ano, a dívida cresce em um montante muito maior que o total de juros declarados pelo Tesouro e o alegado “déficit primário”, o que indica que grande parte dos juros está sendo contabilizada como se fosse “amortização” ou “rolagem”.
A tabela mostra também que os gastos financeiros com a dívida têm consumido trilhões de reais ao longo dos últimos anos. De acordo com as investigações da Auditoria Cidadã da Dívida, esses gastos têm usado recursos de diversas fontes de receita que poderiam e deveriam ser destinadas para os investimentos sociais em Saúde, Educação etc.
Dentre as receitas direcionadas para a dívida estão receitas de tributos, lucros das estatais, eventuais lucros do Banco Central, remuneração da Conta Única do Tesouro (que possui mais de R$ 1,3 trilhão), recebimento de juros e amortizações de estados, municípios e BNDES, além da receita de novos títulos da dívida emitidos e vendidos.
Alguns ainda teimam em defender que todos esses recursos devem continuar sendo destinados ao pagamento da dívida nunca auditada, apesar de todas as irregularidades já documentadas até por CPI .
É hora de rever esses modelos que estão se revelando errados e amarrando o nosso desenvolvimento socioeconômico, e unir economistas de todo o país para suspender imediatamente todos os juros e encargos da dívida, e destinar os recursos para atender as urgentes necessidades sociais e à sobrevivência da economia, e, ao mesmo tempo, realizar completa auditoria dessa dívida pública para estancar seus perversos mecanismos.
Maria Lúcia Fattorelli é auditora fiscal. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.