No segundo semestre de 2019 a reforma da previdência ocupou a maior parte do tempo da mídia jornalística e foi o grande foco dos debates econômicos no país. União, Estados, o Distrito Federal e Municípios declaravam, em uníssono, que já não eram capazes de suportar o custeio de seus regimes previdenciários e as previsões para o futuro apontavam para o rompimento do pacto geracional. Os novos aposentados e pensionistas e, em casos extremos, já os atuais, não receberiam a integralidade de seus benefícios.
As estratégias e articulações políticas levaram o governo federal a aprovar no Congresso Nacional, em novembro de 2019, a Emenda Constitucional 103/2019, contemplando a reforma do plano de custeio e benefícios do regime geral regido pelo INSS, e apenas com relativo impacto para os mais de dois mil e cem RPPS ( Regimes Próprios de Previdência Social) no país, deixando para governadores e prefeitos o ônus político de cuidar de sua própria reforma.
Mesmo as escassas mudanças na Constituição – entre elas a majoração impositiva das alíquotas mínimas de 11% para 14% e da idade referencial mínima para aposentadoria voluntária para 65 anos de idade nos homens e 62 para as mulheres – que impuseram impacto para os RPPS, representaram moderado alívio apenas para alguns dos gestores locais e necessitariam da atuação do executivo e legislativo dos próprios entes na adequação de suas legislações ao novel dispositivo constitucional.
Dados da Secretaria de Previdência demonstram que os Estados da BA, AL, GO, MG, PE, SP, SE, AC, AM, CE, ES, MA, MT, MG, PA, PR, PI, SC, RJ e RS já estariam adequados à Emenda Constitucional e um passo à frente dos demais, na busca do equilíbrio financeiro e atuarial de seus regimes previdenciários. Quanto aos municípios, nem mesmo a Secretaria da Previdência parece ter, ainda, a consolidação dessas informações de forma precisa.
Alguns dos municípios, principalmente as capitais e os municípios maiores, já andavam às voltas com suas próprias reformas e, portanto, estariam mais avançados na busca pela sustentabilidade de longo prazo de seus regimes.
Na vanguarda desse movimento, o município de Goiânia aprovou a Lei Municipal nº 312/2018 que, além de reestruturar a administração do RPPS, tornando-a mais segura e capaz de criar alternativas de sustentabilidade, introduziu novos planos de benefícios e de custeio. Com estratégias amplas e modernas que incluíram o aporte e monetização de ativos financeiros e imobiliários que, efetivamente, permitiram dar um norte ao equacionamento de seu deficit atuarial, a nova lei municipal foi capaz de reduzir o déficit financeiro mensal, naquela época superior a R$ 30 milhões por mês.
Também o município de São Paulo deu os primeiros passos para equacionar seu deficit financeiro e atuarial ao aprovar a Lei nº 17.020/2018 que, além de aumentar as alíquotas para 14%, instituiu seu regime de previdência complementar.
Informações do Anuário Estatístico disponível no site da Secretaria de Previdência apontam que em 2019 o RPPS da União apresentou um deficit atuarial de R$ 1,22 trilhão, os dos Estados e Distrito Federal juntos, R$ 1,05 trilhão e a soma dos municípios representaria algo em torno de R$ 74,7 bilhões. Portanto, um total de mais de R$ 3,01 trilhões estariam faltando na conta de receitas menos despesas previstas para os RPPS para os próximos 75 anos.
Ilustrando, mesmo que com dados de 2018, extraídos em julho de 2019, apontados no Anuário Estatístico da Secretaria de Previdência, a dimensão do problema que ainda persiste, Estados, Distrito Federal e municípios tiveram receitas previdenciárias de R$ 114,39 bilhões e despesas de R$ 219,91 bilhões naquele ano, ou seja, além das contribuições previdenciárias patronais, precisariam desembolsar, anualmente, cerca de R$ 105,52 bilhões apenas para arcar com a folha de pagamentos dos benefícios já concedidos até aquela data, valor este que certamente será muito superior agora em 2020.
Como efeito secundário da pandemia, ao argumento de suporte ao enfrentamento do novo Coronavirus, o Congresso Nacional, aprovou o PLP nº 39/2020 no último dia 2 de maio, que, se sancionado pelo presidente da República, como está, permitirá que lei municipal dispense o recolhimento das contribuições previdenciárias patronais até o final dezembro de 2021, agravando ainda mais o presente cenário.
Os esforços até então dispensados eram direcionados para salvar as contas e a previdência pública, com o agravante das contingências de ser 2020 um ano eleitoral, foram absorvidos pela necessidade de combate ao novo Coronavirus.
Poucos são os entes com capacidade técnica, operacional e política de enfrentar ambos os temas de maneira simultânea. Algumas das tentativas de efetivar tais reformas, a exemplo do Distrito Federal e do Governo de Alagoas, têm sido objeto de decisões judiciais que suspendem seus efeitos, demonstrando que a urgência tem fornecido elementos diversos, como a supressão de partes das formalidades legislativas ou até mesmo o aumento da sensibilidade e preocupação do Judiciário com os efeitos da pandemia, para impactar o problema da previdência.
O que se tem como certo é que os deficits financeiros e atuariais dos RPPS não desapareceram da noite para o dia em virtude da necessidade de combate à covid-19, pelo contrário, a situação somente se agravou nesses primeiros meses do ano, e, se o tema saiu da mídia, é porque os meios de comunicação não mais o consideram importante diante do que agora se apresenta.
A continuidade do adiamento das medidas de caráter permanente, que já tardam em ser adotadas, poderá consolidar o iminente colapso na capacidade dos tesouros dos entes federados em suportar os pagamentos dos benefícios atuais e, não em menor escala, inviabilizar sua capacidade de realizar os aportes necessários para prover os benefícios que deverão ser pagos às gerações futuras de servidores.
Temas diversos precisam ser tratados. Políticas de gestão de pessoal e a forma como são elaborados os planos de carreiras ainda devem ser repensados. As remunerações dos servidores deverão obedecer à Lei Complementar 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal, bem como à Portaria MF nº 464/2018, compatibilizando-os com a capacidade orçamentária, financeira e fiscal de cada ente e deverão, também, ser sustentadas por princípios que privilegiem competências técnicas, conhecimento e profissionalismo compatíveis com os serviços demandados pela população.
O momento exige atenção, estudos, quebra de paradigmas e criatividade para identificar fontes alternativas de financiamento dos planos de benefícios, com a possível vinculação de outros ativos financeiros, que não apenas o tesouro, e também de não financeiros, seguindo o permissivo inserto no artigo 249 da Constituição Federal desde 1998, permitindo a análise de viabilidade da implementação de estratégias de monetização dos ativos a serem vertidos para os fundos de previdência.
A Constituição Brasileira, com seu apelo social, invoca em seu artigo 5º a inviolabilidade do direito à vida que requer do Estado a força positiva em sua defesa. Assim, não sem razão, como o fez com a mídia, o coronavirus tem sido capaz de em si concentrar o foco da atenção e energia empregadas em seu combate. Há de encontrar-se sensatez para dividir tarefas, atribuir competências e cuidar também da questão previdenciária. Não se olvide que no preço a pagar, assim como os tão debatidos efeitos na economia, no trabalho e no emprego, também a Previdência apresentará sua fatura.
Não se olvide que no preço a pagar, assim como os tão debatidos efeitos na economia, no trabalho e no emprego, também os regimes próprios de previdência de estados e municípios podem tornar-se vítimas da pandemia.