A crise sanitária da covid-19 nos coloca diante do dilema de queda de arrecadação e aumento de gastos. De um lado, por conta das necessárias medidas preventivas, haverá redução na arrecadação de tributos, além de desonerações, parcelamentos e outras facilidades tributárias que são necessárias para as classes mais pobres e para as pequenas e médias empresas. Este é o receituário aplicado na maioria dos países neste momento. Por outro, o Estado nunca foi tão demandado em termos de ampliação de políticas públicas como agora. Precisamos de recursos para aparelhamento da saúde pública e para garantir renda para que as populações mais necessitadas consigam sobreviver. Desonerar tributos e aumentar os gastos parece, a priori, uma equação que não fecha, no entanto, estas duas medidas não são, de forma alguma incompatíveis.
Inicialmente, porque não há limitação fiscal para o aumento de gastos públicos, já que o Estado detém soberania monetária, ou seja, pode emitir moeda. Além disso, o Estado também pode emitir títulos e captar recursos no setor privado, bem como ampliar a tributação sobre setores em que existe mais acumulação de riquezas. As limitações para a ampliação dos gastos públicos não são técnicas, mas sim de natureza política e ideológica, algumas até de natureza moral, e, mesmo os mais ferrenhos defensores do Estado Mínimo, neste momento, já admitem a necessidade de ampliar os gastos públicos.
Obviamente que a tributação não pode ficar de fora da solução e deve ser reorganizada para fazer frente a essa contingência. Ladislau Dowbor (2018)[i], analisando Piketty, nos ensina que, entre financiar os gastos por impostos ou pela dívida, o imposto é uma solução infinitamente preferível, tanto em termos de justiça como de eficácia. Se o momento exige solidariedade com os setores mais carentes, é hora de os setores mais ricos serem finalmente colocados nesta equação.
O Brasil possui grandes estoques de riquezas, decorrentes da profunda desigualdade social, que agora, mais do que nunca, precisam ser melhor tributados para fazer frente à necessidade de ampliação dos gastos públicos, e não é por outra razão que existem vários projetos em discussão propondo a implementação do Imposto sobre Grandes Fortunas - IGF, neste momento.
Tributar os Ricos para Enfrentar a Crise
O manifesto “Tributar os Ricos para Enfrentar a Crise”[ii], elaborado pela Fenafisco, Anfip, Instituto Justiça Fiscal (IJF) e pelo coletivo Auditores Fiscais pela Democracia (AFD), que já conta com quase 3 mil assinaturas de apoio, apresenta também o IGF como medida complementar a mais outras seis propostas, todas voltadas à ampliação da tributação dos ricos e da riqueza.
As diversas propostas de IGF trazem sempre um diagnóstico comum: as classes mais abastadas do país vêm sendo tributadas em níveis muito inferiores aos níveis exigidos dos mais pobres. Ou seja, o sistema tributário brasileiro cobra muito menos tributos dos mais ricos do que dos mais pobres, em relação à capacidade de cada um. Não vamos aqui entrar nos detalhes do porquê desse fenômeno, já bastante discutido e comprovado por muitos especialistas. Nosso foco é analisar quais seriam as medidas mais eficientes para financiar os gastos e ao mesmo tempo, corrigir esta grave distorção tributária que só faz aumentar as desigualdades no País.
Por diversos motivos, o IGF sempre foi barrado no Congresso Nacional, sob argumentos de que as riquezas iriam fugir do País, que o valor estimado de arrecadação seria insignificante, que é um tributo de difícil administração, que iria desestimular os investimentos, entre outros.
Em primeiro lugar é preciso definir o que seria uma grande fortuna e quem seriam afetados por este imposto. Pela proposta encaminhada a partir daquele manifesto “Tributar os Ricos para Enfrentar a Crise, grande fortuna é apenas o patrimônio superior a R$ 10 milhões e o imposto incidiria apenas sobre a parcela que excedesse este valor. Assim uma pessoa que tivesse uma riqueza acumulada de R$ 12 milhões teria apenas R$ 2 milhões tributados pelo IGF, o restante estaria isento. Um trabalhador que juntasse R$ 1.000,00 por mês, levaria mais de 500 anos para obter um patrimônio de R$ 10 milhões.
Mas quantas pessoas têm mais de R$ 10 milhões?
Segundo a publicação “Distribuição de Renda por Centis (2018)”, que apresenta as informações referentes às declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas[iii], apenas 60 mil pessoas, dos 30 milhões de contribuintes do IRPF, apresentaram declaração de bens e direitos superiores a R$ 10 milhões. Este quantitativo representa menos de 0,2% dos contribuintes e menos de 0,03% da população brasileira. Pouquíssimas pessoas, portanto, mas que, juntas, possuem quase R$ 2 trilhões em bens e direitos declarados. Considerando uma alíquota média de 1%, este tributo poderia arrecadar cerca de R$ 20 bilhões.
Este dado revela a gigantesca concentração de riqueza do nosso País. Na verdade, somos um dos países com maior concentração de riquezas do mundo. A revista Forbes, em 2019, publicou artigo revelando que o Brasil já teria 206 bilionários[iv], e que o patrimônio deste seleto grupo seria superior a R$ 1,2 trilhão. Este valor corresponde a um patrimônio médio de mais de R$ 6 bilhões. Em relação a outras nações, somos o 7º país em quantidade de bilionários, no entanto, em termos de PIB per capita, estamos entre as posições 50 e 64º[v].
Publicação da OXFAM Brasil dá conta de que as cinco pessoas mais ricas do Brasil possuem riqueza igual à da metade da população brasileira[vi]. Jorge Paulo Lemann, Joseph Safra, Marcel Hermann Telles, Carlos Alberto Sicupira e Eduardo Saverin possuem, juntos, fortuna total de US$ 84,9 bilhões, o que equivale a uma fortuna individual de cerca de R$ 85 bilhões[vii]. Se essa riqueza fosse tributada com uma alíquota de 1,5%, seria possível arrecadar mais de R$ 6 bilhões ao ano. Para se ter uma ideia do que significa este valor, considerando o custo estimado para tratamento de casos graves da covd-19, com internação em UTI, de R$ 45.558,00[viii], esse tributo seria suficiente para financiar o tratamento para 140 mil pessoas infectadas. Obviamente que uma alíquota de 1,5% não vai afetar em nada a qualidade de vida destes bilionários, mas poderá salvar a vida de milhares de pessoas menos privilegiadas.
Esta profunda concentração de riquezas no Brasil é reflexo de uma, tão ou mais grave, enorme concentração de renda. Pelas declarações de Imposto de Renda das Pessoas Físicas (RFB 2018), percebe-se que os 0,1% dos contribuintes do IRPF possuem 9% de toda a renda declarada. Estas altas rendas no Brasil têm sido muito pouco tributadas desde que a Lei 9.249, em 1995, passou a tratar como isentos do Imposto de Renda os lucros e dividendos distribuídos, inclusive quando remetidos ao exterior. Por conta deste tratamento privilegiado, quem ganha mais de R$ 300 mil por mês tem mais de 70% do seu rendimento isento. A ampliação da tributação da riqueza passa também, e principalmente, pela revogação desta isenção, medida que, segundo o manifesto “Tributar os Ricos para Enfrentar a Crise”, seria capaz de gerar mais de R$ 100 bilhões de arrecadação.
O argumento de que a tributação das altas rendas e das grandes fortunas poderia promover uma fuga das riquezas do País não se sustenta, pois grande parte destes ativos são imobilizados. Como transferir para fora do país os prédios, as casas, os latifúndios, as fazendas ou os investimentos em empresas? Aliás, diversas simulações constantes no estudo “Reforma Tributária Necessária – Diagnóstico e Premissas (2018)[ix], demonstram que, mesmo promovendo-se alterações tributárias progressivas, continuaríamos praticando uma tributação sobre a renda e patrimônio inferior à média dos países da OCDE, por exemplo.
Evidentemente que não há tributo insonegável e sempre haverá mecanismos de evasão e de fuga, mas isso não pode ser usado como pretexto para não implementá-lo, mas sim para criar instrumentos para inibi-los. Em relação ao IGF proposto, as pessoas físicas residentes no Brasil que sejam proprietárias de grandes fortunas serão tributadas aqui independentemente de onde estejam seus bens e direitos, se aqui ou no exterior. Portanto, a transferência de ativos para o exterior, não seria suficiente para afastar a incidência tributária. Em relação aos bens e direitos localizados no Brasil, as pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliadas no exterior também serão tributadas aqui. Portanto, com estas medidas, vários possíveis planejamentos tributários serão evitados ou mitigados.
Por outro lado, há também a previsão de que os investimentos de interesse para o desenvolvimento nacional, ou de interesse ambiental, social ou cultural, não serão tributados pelo IGF, o que afasta uma alegação frequente de que este imposto poderia prejudicar os investimentos produtivos. Aliás, o IGF pode se transformar em um poderoso instrumento para estímulo de alocação de investimentos em atividades produtivas.
Trazer os ricos para a equação significa, finalmente, a implementação da progressividade no sistema tributário, agenda interditada do conjunto de medidas necessárias para a construção do Estado de Bem-estar, desenhado na Constituição Federal de 1988. Além disso, tributar os mais ricos abre um importante espaço para desonerar as camadas mais pobres da população, o que, além de reduzir a desigualdade social, constitui importante fator para a retomada do desenvolvimento econômico, pois aumenta o consumo e cria demanda, que aumenta a produção e gera empregos.
A redução das desigualdades sociais, a erradicação da pobreza e da marginalização, como determina o Artigo 3º da Constituição Federal, só serão possíveis, com o enfrentamento dessa profunda concentração de renda e riqueza em nosso País. A pobreza e a miséria são as consequências, ou os sintomas, da extrema riqueza. Portanto, a tributação das altas rendas e das grandes fortunas é muito mais uma necessidade do que uma opção, neste momento, e é determinante do que seremos, como sociedade, depois que passar esta tragédia humanitária que estamos vivendo agora.