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O papel do gasto público na desigualdade
Cecilia Machado | Jornal do Comércio
Durou apenas um dia o apoio a favor do teto dos gastos, feito pelos chefes dos Poderes Executivo e Legislativo em entrevista coletiva.
Hoje já se fala abertamente em controle menos rígido dos gastos. Afinal, foram mais de R$ 700 bilhões na PEC Emergencial, e a situação de crescimento e desemprego exigirá esforços que vão além da emergência sanitária.
Por que não persistir nos gastos públicos para suavizar os efeitos da pandemia? O flerte com a indisciplina fiscal é mesmo irresistível, ainda mais quando angaria suporte político e eleitoral.
O problema é que a expansão de gastos encontra limites na capacidade de endividamento do governo. Sabemos que a conta chegará em algum momento. Nenhum gasto novo vem sem contrapartida, nem mesmo os excepcionais. E, quando passamos a uma situação na qual o endividamento público passa a ser visto com desconfiança, os benefícios do gasto passam a ser bem menores que seus custos.
Uma crise fiscal, em geral, vem acompanhada por instabilidade macroeconômica, baixo crescimento, inflação alta e desemprego. Assim, atinge justamente os mais vulneráveis. Chega àqueles que não têm conta bancária, que não têm a carteira assinada, que não têm poupança para se proteger em momentos difíceis. E é exatamente por esse importante motivo que temos o teto dos gastos.
É enorme equívoco associar a austeridade fiscal a uma política distributiva regressiva, já que crises decorrentes de irresponsabilidade fiscal atingem desproporcionalmente os mais pobres.
Ademais, nossa história recente mostra que muitas expansões de gastos públicos não foram direcionadas para quem mais precisa. Exemplos não nos faltam: a expansão do funcionalismo público, os vultuosos auxílios dos membros do Judiciário e Ministério Público, as generosas pensões e aposentadorias dos militares e a benevolente regra de reajuste para os salários dos professores. Vale lembrar que o funcionalismo público pertence ao topo da nossa distribuição de renda.
O teto dos gastos cumpre o indigesto papel de frear expansões fiscais insustentáveis. Atua para impedir que o Estado continue sendo grande propagador e amplificador das nossas desigualdades, já que a pressão por mais gastos apenas evidencia o enorme fracasso da atual política redistributiva, ao mesmo tempo que revela atuação duvidosa do Estado no papel que lhe destinou a Constituição: educação e saúde para todos, os verdadeiros meios para a superação da pobreza e as engrenagens da mobilidade social.
Ao contrário do que se argumenta, o teto é bem-vinda oportunidade para revermos nosso pacto social, revisitando de forma detalhada e criteriosa os nossos gastos: para onde vão e se atendem de forma apropriada das demandas por transferências e serviços da sociedade.
De fato, o teto de gastos não determina a forma como o Estado distribui os recursos que arrecada. Não há política distributiva mais progressiva que direcionar toda a arrecadação de impostos -35% do PIB- justamente para os mais pobres. O problema é que o dinheiro não vai para eles. E é aqui que incide o conflito distributivo e a demanda por mais gastos.
O pós-pandemia demandará maior atenção aos aspectos redistributivos dos gastos, seja através de uma rede de proteção social ampliada, seja pela unificação e redução de impostos, seja por uma educação de qualidade que aumente a produtividade da força de trabalho. Não se pode deixar que venham acompanhadas de pressões por maiores gastos, que, no fim das contas, atendem muito pouco aos mais pobres.
Uma coisa é fazer frente a programas emergenciais que protegem -de forma necessária- pessoas durante a crise, gastos que por definição são temporários e datados. Outra coisa é usar a excepcionalidade para retornar aos tempos de irresponsabilidade fiscal.
Expansões permanentes de gastos sociais somente serão eficazes se couberem dentro do Orçamento.