Caros leitores, este artigo é complementar ao artigo “Crítica ao PL de Código de Defesa do Contribuinte” publicado no site do Sindifisco-RS, no qual foi demonstrado, alicerçado na Constituição Federal, que a atividade de administração tributária é típica de Estado e não pode ser delegada e/ou compartilhada com agentes privados.
Pretendo agora enfrentar o ponto central que repetidamente autores e defensores de projetos de lei utilizam para justificar a instituição de um “Código de Defesa do Contribuinte” (ou Boas Práticas como se quer chamar no RS). O denominado punitivismo fiscal. Atualmente tramitam no Congresso Nacional dois projetos legislativos que instituem o denominado Código de Defesa do Contribuinte. Na Câmara Federal, existe o projeto de lei ordinária PL 2057/2011 e no Senado Federal tramita o projeto de lei complementar PLS 298/2011. Agora, na Assembleia Legislativa do RS, temos a sexta tentativa de aprovar um projeto nesse objetivo, o denominado “Código de Boas Práticas” (PL 186/2020). Todos os demais projetos foram, acertadamente, em sua maioria arquivados, e nunca chegaram à votação em plenário.
Independente da análise dos conteúdos dos projetos legislativos, é irrefutável a necessidade de que eventual instituição deva ser por meio de Lei Complementar federal, por tratar-se de matéria de regramento geral da relação Fisco X Contribuinte. Sua competência é privativa da União conforme prescreve a Carta Magna. Bom, adentremos no objeto do presente artigo. A premissa do punitivismo segue a mesma lógica do denominado “custo Brasil”. São males que impedem, segundo o Mercado, o desenvolvimento econômico do País.
Tributos e “encargos trabalhistas” são vistos como ônus à produção. Vejamos os números totais de créditos tributários constituídos pelo Fisco do RS, decorrentes de autos de lançamento e infrações no ano de 2019: percebemos que o valor do ICMS exigido (R$ 1,88 bilhão – total ICMS e multa) representou 5% do total arrecadado como o imposto no mesmo ano (R$ 35,74 bilhões); no ITCD, o créditos tributários lançados pelo Fisco no mesmo ano representaram (R$ 28,05 milhões), 4% do total arrecadado com o imposto (R$ 673,81 milhões); e o IPVA, por sua vez, teve inadimplência de apenas 2,65%. Onde está o punitivismo ou a fúria punitiva do Fisco? Portanto, ao se debruçar sobre o assunto é preciso tratá-lo com profundidade e seriedade de análise.
Elenco, a seguir, situações concretas que demonstram que o sistema punitivo tributário está mais para sistema permissivo de irregularidades contra o erário público. Recentemente, a Lei Complementar nº 160 de agosto de 2017, sem qualquer debate público, abriu possibilidade do CONFAZ, através do Convêncio ICMS nº 190/17, permitir a convalidação de todas as renúncias fiscais INCONSTITUCIONAIS de ICMS (a chamada guerra fiscal foi declarada inconstitucional pelo STF) – décadas de violações com subsídios que certamente atingem as cifras de bilhões de Reais foram “convalidados” – ainda há punitivismo? Para quem? É esse tipo de reforma que interessa a influentes grupos econômicos. Anualmente são concedidas anistias por todos os entes federados, inclusive para autuações que se caracterizam em crimes contra a ordem tributária. Demonstra-se assim que o sistema privilegia quem não cumpre suas obrigações.
Além de perdão de multas e juros, ainda contam com prazos dilatados de moratória para o pagamento do imposto. Qualquer planejamento tributário simplório indicará que é extremamente vantajoso não recolher tributos no prazo. A certeza da impunidade leva a produção de estoques gigantescos de dívidas ativas. Se somados os estoques de todos os entes federados, ultrapassam a casa dos trilhões de Reais. Contribuintes com grande poder econômico se utilizam de renomadas bancas de assessoramento (advogados, contadores, economistas etc.) para efetuarem seu planejamento tributário, buscando maximizar lucros pela mitigação do ônus tributário. Creio que todos saibam da existência de inúmeros paraísos fiscais. Esses mesmos contribuintes, também estão sempre bem posicionados ante o poder público à obtenção de subsídios e outros benesses fiscais. É, podemos perceber que os contribuintes, considerada sua capacidade econômica, têm tratamento muito diferenciado entre si. Decisões judiciais normalmente se inclinam, com base na princípio da liberdade econômica, no sentido de que o Fisco não pode adotar medidas de restrições cadastrais contra maus pagadores (contumazes), mesmo diante de contribuintes insolventes.
São raros os casos de condenações criminais por delitos contra a ordem tributária, e, quando acontecem, normalmente são imputadas penas brandas contra os autores (diretores, sócios etc.). A responsabilização de sócios ou diretores de pessoas jurídicas, quer solidariamente e/ou por meio da desconsideração da personalidade jurídica da empresa, também são eventos excepcionais nos tribunais. O Brasil é uma nação singular, se indigna e brada contra o crime de corrupção dos agentes públicos, porém, a sonegação fiscal (e outros crimes contra a ordem tributária) não desperta o mesmo sentimento. Aliás, não raro, é justificado como correta, pois afinal os recursos, segundo os defensores da tese, não terão mesmo a destinação devida.
Curioso, pois ambas as modalidades de delitos são lados da mesma moeda. Somente em dezembro de 2019, o STF passou a considerar crime o não recolhimento sistemático do ICMS. “O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º (inciso II) da Lei 8.137/1990”. Com esse entendimento, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) concluíram na sessão desta quarta-feira (18) o julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 163334, interposto pela defesa de comerciantes de Santa Catarina denunciados pelo Ministério Público Estadual (MP-SC) por não terem recolhido o imposto.” O que se necessita com urgência é a instituição de de uma Lei Orgânica nacional que defina as normas gerais à Administração Tributária Nacional (LOAT).
Para tanto, é imprescindível que tais normas, em termos federativos, reconheçam a carreira de AUDITOR-FISCAL, em todos os níveis federados, como verdadeira carreira de Estado. Nesta seara sim o RS é pioneiro e inovador. Publicou sua LOAT em 27/04/2010 (Lei Complementar 13.452/2010), que certamente pode servir de paradigma à instituição da LOAT nacional.