O sistema tributário brasileiro é pródigo em produzir injustiças de um lado e benesses de outro, quase sempre cobertas por uma grossa camada de complexidade. Das muitas distorções tributárias do nosso país, merece destaque a diferença no tratamento dado às pessoas físicas, entre os assalariados e os recebedores de dividendos. Entre os últimos estão profissionais liberais que puderam se organizar como pessoas jurídicas, além de sócios/acionistas de empresas de todos os tamanhos. Os assalariados estão submetidos à tabela do IRPF, com alíquota máxima de 27,5% a partir de R$ 4.664,68 mensais. Os recebedores de dividendos, por sua vez, estão integralmente isentos. Ainda que se considere que uma parte dos lucros e dividendos tenha sido tributado na Pessoa Jurídica, há sem dúvida uma enorme benesse tributária a esse grupo de contribuintes. Há diferentes modelos mundo afora, mas não há país com economia relevante que pratique essa isenção integral aos recebedores de dividendos.
A pejotização é um fenômeno muito marcante no Brasil, estimulado profundamente por induções tributárias ao longo do tempo. A primeira delas ocorreu justamente com a Lei nº 9.249/95, art. 10, criadora da isenção na distribuição de lucros e dividendos da PJ aos sócios, antes tributada com alíquota de 15%. Outra alteração marcante foi a Lei nº 11.196/05, artigo 129, que passou a considerar como pessoas jurídicas, para fins fiscais e previdenciários, prestadores de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural.
Mais recentemente, em 2017, dois novos impulsos. A reforma trabalhista e a lei 13.429/2017, também conhecida como lei da terceirização, acabaram por catalisar a transformação de relações formais de emprego em prestação de serviço. Embora alguns economistas enxerguem virtudes nessas alterações, há inegável prejuízo para as relações de trabalho e para o futuro das contas da Previdência Social, fortemente afetadas pela queda de arrecadação causada pela pejotização.
Ao lado de pequenos empreendedores, em favor dos quais a benesse tributária pode ser considerada justa, foram se juntando profissionais liberais com alta renda, que não satisfeitos em gozar dessa vantagem fiscal como pessoa física, buscaram também uma sombra fresca debaixo do Simples Nacional. Os Grandes Números IRPF 2019, estudo publicado pelo CETAD – Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros da Receita Federal, releva que algumas profissões se destacam na utilização de tal benefício fiscal. Mais de 200 mil médicos declararam cerca de R$ 50 bilhões como isentos e mais de 100 mil advogados, cerca de R$ 30 bilhões. Advogados se encaixam no Anexo IV do Simples, com alíquotas generosas. Por exemplo, de 30 a 60 salários mínimos por mês de faturamento, a alíquota total efetiva é de 6,75% a 8,47% na PJ, e isenção integral na distribuição de lucros. Exemplo de que no Brasil existem oásis paradisíacos para alguns em meio ao inferno fiscal reinante. O Simples sofreu uma longa hipertrofia e hoje permite faturamento anual de até R$ 4,8 milhões. Não existe no mundo sistema simplificado de subtributação com limite tão elevado.
Para faturamentos acima do limite do Simples, há o regime denominado lucro presumido, com teto de até R$ 78 milhões por ano. Acima disso, no topo da pirâmide estão os sócios das grandes empresas do país, tributadas pelo Lucro Real. Muito embora a alíquota nominal do IRPJ possa chegar a 34% (25% de IRPJ + 9% de CSLL), há regras que permitem a redução das bases de cálculo. Em média, os lucros sujeitos à tributação são 30% inferiores aos lucros contábeis, permitindo que valores expressivos cheguem aos bolsos dos sócios integralmente isentos.
Esse conjunto de regimes diferenciados, ao final, resulta em uma brutal diferenciação nas alíquotas efetivas do IRPF, conforme gráfico abaixo:
A alíquota média máxima, situada em 10,6% (faixa de 30 a 40 salários mínimos), não parece tão alta. Mas cabe observar que ela é formada pela média entre assalariados pagando 20,1% e recebedores de dividendos pagando 5,7%. Nos dados atinentes aos recebedores de dividendos estão contribuintes que recebem parte do rendimento tributável e parte como dividendos. Se fossem apenas dividendos, a alíquota seria zero.
A alíquota média cai fortemente a partir da faixa de 30 a 40 salários mínimos por mês, em razão de haver, a partir dessa faixa, cada vez menos assalariados e mais recebedores de dividendos. Percebe-se que a tão propalada progressividade existe, mas ela vai até a faixa dos 30 a 40 salários mínimos e focada nos assalariados. A partir daí, a regressividade é a regra: quanto mais se ganha, menos se paga.
Um assalariado na faixa de R$ 3 mil a R$ 5 mil por mês paga mais IRPF do que um milionário que ganha acima de 320 SM por mês. É surreal, mas no Brasil, contrariando o bom senso ou qualquer argumento técnico, que só os interesses corporativos podem explicar, é verdade! Quem exatamente ganha há 25 anos com a isenção dos lucros e dividendos? Dentre os 30 milhões de brasileiros que entregaram a declaração do Imposto de Renda da Pessoa Física em 2019, 3,2 milhões declararam receber lucros e dividendos ou rendimentos de titular de microempresa. No ano-calendário de 2018, um recorde de R$ 327,9 bilhões pagos em dividendos, mais R$ 104 bilhões em rendimentos de sócios de ME (microempresa) ou optantes pelo Simples, somando R$ 431,9 bilhões integralmente isentos. Vale lembrar que o Simples deixou de ser, há tempos, apenas para os pequenos. Os valores recebidos por aqueles com rendimentos acima de 40 salários mínimos por mês somaram 68,5% do total dos rendimentos isentos. Ou seja: não são os pequenos, e não é pouco dinheiro.
Paradoxalmente, as notícias são de que o governo avalia restringir a dedução, na apuração do IRPF, de despesas com educação e saúde, algo que é extremamente relevante para a classe média e média alta assalariada. Para os grandes recebedores de dividendos não faz diferença, pois como já não pagam IRPF, não há sobre o que deduzir. Os dados revelados pelos Grandes Números 2019 confirmam que existe alta progressividade entre os assalariados, de forma que a não dedução de despesas médicas e de educação tornará ainda mais pesada a carga tributária para esse segmento que já paga muito, fomentará ainda mais a pejotização, sem nenhum efeito sobre as maiores rendas, acima de 40 salários mínimos, dos recebedores de dividendos isentos.
Os valores que deixam de ser arrecadados desse grupo mais bem aquinhoado da nação poderiam muito bem servir para o redesenho da tributação sobre a renda da pessoa física, começando por corrigir, ainda que em parte, a defasagem histórica de 103,87% datTabela do IRPF. Uma correção de 58%, conforme proposta do Sindifisco Nacional, levaria a faixa de isenção para 3 mil reais, gerando 6,5 milhões de novos trabalhadores isentos.
Uma maior tributação sobre a renda, efetivamente progressiva sobre as maiores rendas, sem puxadinhos, sem privilégios para essa ou aquela profissão ou atividade, permitiria reduzir a tributação sobre o consumo no Brasil, que é sabidamente a maior fonte de regressividade do sistema tributário brasileiro. São nos produtos do dia a dia, nas contas de luz, no gás e até na água que estão embutidos, de forma invisível para o consumidor, quase um trilhão de reais fracionados em diversos impostos, representando cerca de 45% de toda a arrecadação nacional. Além de maior justiça fiscal, a redução da tributação sobre o consumo de bens e serviços trará redução de preços ao consumidor, aumento de demanda e de produtividade, gerando mais empregos e ajudando o país a dar os passos necessários na direção da retomada econômica.
*Kleber Cabral, Auditor-Fiscal da Receita Federal e presidente do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Sindifisco Nacional)