A carga tributária brasileira manteve-se relativamente estável durante os anos 2000, ao redor de 33% do PIB, valor próximo da média dos países desenvolvidos e acima da observada para os emergentes. Nesse sentido, para além das ressalvas entre comparações empregando médias de um grupo de países com valores muito distintos de carga, é preciso ressaltar que há uma forte correlação entre carga tributária e extensão do Estado de Bem-Estar.
Assim, o debate acerca do tamanho da carga tributária só pode ser feito com honestidade intelectual ao se considerar não apenas a ótica da arrecadação, mas também sua contrapartida, isto é, como esse Estado transfere os recursos arrecadados para a população - analisados via transferências monetárias e serviços prestados. Na Nota Técnica 89 do Ipea, procuramos contribuir com esse debate por meio da estimação dos efeitos redistributivos da tributação direta e das transferências monetárias por meio das Pesquisas de Orçamentos Familiares (POFs) do IBGE.
Pesquisas futuras que investiguem também os efeitos da tributação indireta e da prestação dos serviços públicos de saúde e educação decerto poderão oferecer um olhar mais completo sobre o tema. Por ora, gostaríamos de ressaltar algumas conclusões de nosso estudo que oferecem caminhos para a redução da desigualdade extrema que caracteriza nossa sociedade. Há espaço para uma elevação da carga tributária sobre os mais ricos e partilhar os custos da crise sanitária O primeiro aspecto a sublinhar é o efeito redistributivo das transferências monetárias públicas. Esse conjunto de benefícios tem impacto redistributivo, reduzindo o Índice de Gini em 11%. Ou seja, sem essas transferências a já expressiva desigualdade brasileira seria ainda maior.
No entanto, embora esse efeito ainda possa parecer de pequena monta, na prática, não o é. Isso se deve, em boa medida, ao fato que as transferências com maior peso serem as de caráter contributivo e que, portanto, alteram em menor grau a desigualdade ao não abranger os indivíduos que não têm trajetória laboral formal. Logo, é falacioso considerar que grande parte dos gastos não contribuem para a redução da desigualdade sem ter em mente que uma parcela significativa desses benefícios advém da relação expressa pelo trinômio afiliação-contribuição-benefício. Mais ainda, considerando-se os efeitos “na margem” (o quanto um real a mais gasto em cada transferência afeta a desigualdade), observa-se que as aposentadorias e pensões do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) possuem o maior impacto, ainda que transferências assistenciais como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) tenham perfis mais progressivos e “pró-pobres”.
A razão por trás desse resultado está ligada ao fato de que a relevância do RGPS na renda das famílias potencializa seus efeitos redistributivos, apesar da melhor focalização observada daquelas duas transferências. As aposentadorias e pensões do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), por outro lado, são regressivas, têm efeito concentrador de renda. Já o impacto conjunto de ambos os regimes de previdência é neutro em termos distributivos, o que evidencia o caráter de seguro do sistema previdenciário. Outra consideração fundamental diz respeito à importância na estrutura distributiva das “rendas não monetárias”, de maior peso na renda das famílias mais pobres. Nessa categoria, destaca-se o “aluguel imputado”, valor que a família que declara morar em imóvel próprio pagaria se o domicílio em que reside fosse alugado, que representa mais de 75% do valor total dessas rendas.
A par dessa constatação é possível descortinar o elevado potencial redistributivo de políticas habitacionais, envolvendo tanto a construção e melhoria de habitações para os grupos mais pobres quanto investimentos em infraestrutura urbana. Por último, nossos resultados mostram que a tributação direta exibe baixa progressividade, o que, associado ao reduzido peso desses impostos sobre a renda, resulta em um impacto redistributivo pouco significativo: após a incidência dos tributos diretos, a desigualdade mensurada pelo Gini cai apenas 2,1%. Isto evidencia a enorme resistência que ainda predomina em setores políticos e economicamente importantes da sociedade brasileira em relação aos objetivos redistributivos na tributação, a despeito inclusive de uma crescente concordância entre os estudiosos de que este seria um tema central em uma reforma tributária. Alguns analistas, a partir dos resultados de nossa Nota Técnica, associaram a questão da regressividade do RPPS à necessidade de uma reforma administrativa.
À vista disso, aproveitamos para oferecer algumas ponderações para qualificar esse debate. Primeiro, é preciso observar que essa regressividade está, em grande medida, relacionada aos diferenciais salariais entre o setor público e o privado, à não existência de um teto contributivo e a alguns benefícios que esse regime conferia no momento da aposentadoria. Os dois últimos fatores foram, em boa parte, eliminados com as várias reformas previdenciárias implementadas nas últimas décadas, ainda que seus efeitos ainda sejam perceptíveis graças ao “estoque” de pensões e aposentadorias do setor público. Em relação ao diferencial salarial (a dimensão do “fluxo”), metade dele se deve aos atributos dos servidores públicos, como escolaridade e ocupação. Já o chamado “prêmio salarial” - a outra metade do diferencial - concentra-se nos servidores do judiciário, do legislativo, do ministério público e no nível federal do poder executivo.
Nos níveis estadual e municipal, o “prêmio” é reduzido, sendo pouco expressivo para os profissionais da saúde e educação. Registre-se ainda que, segundo os dados da Pnad, verifica-se o que se pode denominar uma precarização do serviço público, na medida em que cerca de um terço de sua força de trabalho se encontra em situação de informalidade. Em síntese, há um grande caminho a ser trilhado para que a intervenção do Estado no Brasil tenha um caráter mais redistributivo, e, a tributação direta é onde mais há a avançar. O Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF), por um lado, tem sua progressividade limitada devido a seu baixo peso na renda, bem como as inúmeras isenções e deduções permitidas. Já os tributos patrimoniais (IPTU e IPVA), por outro, têm efeitos distributivos neutros. Portanto, há espaço para uma elevação da carga tributária sobre os mais ricos via esses dois canais o que possibilitaria partilhar os custos da crise sanitária de uma forma mais justa e, ainda, financiar programas de renda mínima voltados aos mais pobres e investimento em infraestrutura.