Em meio ao processo de disputa pelas mesas diretoras de Câmara e Senado, eis que emergiu, outra vez, o debate sobre a reforma tributária. Bem verdade que o tema da reforma nunca sai de pauta totalmente, apenas é deixado de lado por alguns períodos e volta com maior ou menor intensidade.
É compreensível que, enfrentando uma crise sanitária e econômica sem precedentes, diversos atores entrem no campo de disputa pelos recursos, ou, mais diretamente, para apontar quem vai suportar mais pesadamente o ônus do financiamento do Estado. Independente dos vencedores da eleição no Congresso Nacional, estes atores abriram o jogo para colocar suas propostas de reforma tributária. Mas lembremos também que antes mesmo do que agora está posto, de agudização da crise econômica causada pela pandemia, as propostas de reforma já tinham ganhado destaque.
Não se pode abrir mão da política tributária como parte de um projeto nacional e muito menos de seu caráter redistribuidor, especialmente agora que a concentração de riqueza no topo alcança marcos estratosféricos (perdemos apenas para o Catar nesse quesito) e a desigualdade, verdadeira chaga nacional, se aprofunda ainda mais. Somos o sétimo país em desigualdade e sétimo em número de bilionários no mundo. É preciso mudar, de fato.
A reforma tributária é urgente e necessária, desde que ela confira maior progressividade ao sistema tributário e mais justiça fiscal. Precisamos, sim, de uma reforma tributária que tribute a renda e patrimônio no andar de cima e não prejudique o financiamento da seguridade social e a autonomia dos entes federados. Que não seja a reforma das elites.
Analisar a origem da proposta que está tramitando na Câmara dos Deputados, a PEC 45/2019, cujo relator é o Deputado Aguinaldo Ribeiro, pode ser bastante útil para saber qual é a orientação desta proposta.
Em janeiro de 2017, conforme matéria do jornal Folha de São Paulo1, “sete grandes empresas brasileiras decidiram patrocinar a elaboração de uma nova proposta de reforma tributária, que teria como principal diferença a eliminação de cinco tributos ao longo de dez anos”. Foi apontado como novidade o ritmo gradual da mudança para este novo Imposto Geral sobre Consumo que, aprovado, eliminaria supostos vícios dos tributos que representam um grande problema para empresas e governo. O foco era a propalada simplificação tributária, a unificação de impostos e contribuições, que afastariam “demasiadas nebulosidades” do sistema tributário.
Gestada no Centro de Cidadania Fiscal (CCIF), a proposta contou com patrocínio (financiamento) de corporações como Ambev, Votorantim, Natura, Telefônica, Brasken e Itaú/Unibanco. Todas grandes empresas que, movidas por um fabuloso espírito colaborativo, decidiram ajudar o governo a melhorar os “enredos tributários” e, por suposto, melhorar seus ambientes de negócios. Dentro deste espírito colaborativo, não se cogitou pagar de forma justa os tributos, inclusive os lançados pelo fisco e levados ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) e/ou Judiciário.
Segundo Eurico de Santi, um dos mentores do projeto, a ambição do grupo era levar a proposta de baixo para cima, envolvendo empresas, governos regionais e incidir nas campanhas presidenciais de 2018. Para ele, “o governo não tem tempo nem qualidade técnica para formular uma proposta, e não podemos esperar”.
Santi apontou ainda o motivo para que em 2008 não tivesse avançado a primeira proposta, conduzida por Bernard Appy, também integrante do CCIF: resistência de grupos que viam riscos para o financiamento da seguridade social.
Convenhamos, num país como o Brasil, ainda bem que existem grupos preocupados com a seguridade social. Garantir programas de transferência de renda, benefícios, saúde pública e universal e aposentadorias é condição de sobrevivência e vida digna. Estamos falando de um país em que metade dos brasileiros sobrevive com menos de R$ 15 por dia, segundo o IBGE2.
A segunda tentativa esbarrou na resistência dos Estados, temerosos em perder arrecadação. Bastante justificável, afinal alguns deles estão em situação difícil, com o “pires na mão” junto ao governo federal, como se diz. Além disso, o projeto poderia ferir a autonomia dos Estados, que precisariam abrir mão de fazer melhor uso da política tributária própria, ainda que responsáveis fossem pela arrecadação do novo tributo.
Bernard Appy, conforme a matéria do jornal, reconheceu que “a tramitação política de uma reforma exige força política do governo federal e neste momento, a agenda está voltada para a Previdência e a reforma trabalhista”. Appy tinha razão. No ciclo das reformas neoliberais, primeiro, seria necessário encaminhar as reformas previdenciária e trabalhista, talvez até mesmo a administrativa, seguindo a mesma linha de austeridade do Teto de Gastos, aprovado ao final de 2016, para só então, tratar da reforma tributária que fosse necessária para financiar o Estado que sobraria.
Encampado na Câmara dos Deputados, o projeto do CCIF avançou. É a PEC dos mercados, das grandes empresas que, sob o manto da “simplificação”, jogam para um futuro incerto a tributação sobre as altas rendas, o fim da isenção sobre lucros e dividendos distribuídos e dos juros sobre capital próprio.
É verdade que existe uma emenda aglutinativa à PEC 45/2019, de número 178, que é uma proposta de reforma tributária solidária, cuja mote principal é alterar profundamente a distribuição do ônus tributário, trazendo maior progressividade ao sistema tributário, deslocando uma parte significativa da carga tributária do consumo para renda e patrimônio.
Mas neste momento de aprofundamento da crise pela pandemia, com potencial perda de arrecadação pelo encolhimento da atividade econômica torna-se evidente a importância do Estado e das suas instituições e as reformas de caráter neoliberal deveriam ser, no mínimo, suspensas. O aprofundamento do esvaziamento do papel do Estado precisa ser interrompido. Por isso, é fundamental que qualquer proposta de solução passe pela tributação dos detentores de grandes riquezas, dos super-ricos, como fizeram EUA e países europeus na crise do pós-guerra. Nesse nicho, historicamente subtributado, é que devemos buscar os recursos para salvar vidas, garantir emprego e renda para as pessoas e estimular pequenos e médios negócios.
Uma reforma tributária, agora, conduzida sob a mesma lógica das reformas neoliberais, pode aumentar, ainda mais, a desigualdade, colocar em risco o financiamento da seguridade social e comprometer a autonomia de estados e municípios, além de dificultar a retomada da atividade econômica.
As propostas em tramitação no Congresso Nacional, não só a PEC 45, não focam no principal problema do sistema tributário brasileiro, que é o da regressividade e servem apenas para garantir o atendimento do interesse das grandes corporações. Foi o que ocorreu na reforma da previdência, quando foi prometida geração de investimentos, que não ocorreu. De forma semelhante, na reforma trabalhista, quando a promessa era de modernizar as relações de trabalho e gerar mais empregos, o que tampouco ocorreu. A mesma lógica se aplica à reforma administrativa apresentada ano passado pelo governo Bolsonaro, uma reforma dita necessária, modernizante e efetiva, mas que vai precarizar ainda mais os serviços públicos.
Na verdade, estas medidas trazem consigo discursos carregados de ideologia e disseminam mitos junto à população para, no final, aprovar as reformas neoliberais que esvaziam a atuação do Estado e abrem espaço para inciativas privadas que colocam o lucro acima de tudo e jogam a solidariedade e o bem comum para muito longe, praticamente inalcançáveis.
Por que seria diferente em relação à reforma tributária? As evidências apontam que não.
Portanto, defender medidas como as que tributem os super-ricos, taxem altas rendas e grandes fortunas é prioritário, pois disso depende a diminuição da desigualdade social, de raça e de gênero. Evidente que uma reforma tributária progressiva, que faça parte de um projeto de país e que possa levar a um novo sentido de coletividade e bom conviver, é fundamental.
São inúmeras as dificuldades e os desafios na tramitação de projetos de interesse dos setores populares no Congresso Nacional, inclusive o da reforma tributária, por isso devemos redobrar esforços para que o resultado seja o melhor possível para o conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras.