Estamos vivendo uma tragédia humanitária sem precedentes na nossa história. Já somamos mais de 270 mil mortes pela covid-19, sem contar as que não foram devidamente contabilizadas, e não há sinais de que o pior já tenha passado.
O descaso ultrapassou todos os limites e não há mais como aceitar a indiferença e a banalização do caos.
Diante deste quadro dramático, é imperativo reconhecer a necessidade de recuperar e fortalecer as estruturas do Estado, da proteção social, da saúde pública, da assistência, da educação, da pesquisa científica e tecnológica, mas também em diversas outras políticas públicas, especialmente aquelas diretamente voltadas para o desenvolvimento e geração de empregos.
Se antes da pandemia o Estado já era importante, embora viesse sendo relegado a uma posição secundária e subalterna, por uma série de medidas com caráter claramente privatistas, que ajudaram a aprofundar a crise econômica, agora, diante de uma calamidade deste tamanho, a relevância da sua atuação é inegável e a recuperação da sua capacidade é absolutamente urgente e necessária.
As políticas de esvaziamento do Estado, iniciadas com o congelamento dos gastos promovido pela Emenda Constitucional 95, de 2016, não promoveram crescimento econômico, não geraram empregos, não reduziram as desigualdades, nem elevaram os investimentos. A quantidade de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza e da miséria só aumentou. Caímos da 7ª posição, entre as maiores economias do mundo, em 2016, para a 12ª posição, em 2020, e, neste mesmo período, a taxa de desemprego aumentou de 10,2% para 14,6%.
Contrariando todas as evidências, as recomendações de especialistas e a tendência internacional, os apologistas do Estado mínimo não recuaram e continuam operando como se nada estivesse acontecendo, como se o aumento de mortes não fosse consequência das políticas reducionistas, dos cortes dos gastos sociais, do descaso, da indiferença e de um negacionismo doentio. Continuam encaminhando e defendendo os seus projetos de privatização das políticas públicas e de desmonte da proteção social.
O exemplo mais recente foi a tentativa, momentaneamente frustrada, de incluir na famigerada PEC 186/2019 a desvinculação das receitas para as áreas da saúde e da educação, permitindo a redução ainda maior nos já parcos recursos disponíveis para estas políticas.
Utilizam-se, de forma oportunista e sorrateira, de um clamor popular por renda emergencial para as populações em situação de vulnerabilidade, para fazer andar suas velhas pretensões de reduzir o Estado a uma condição residual e subsidiária do mercado. Diversos projetos de Emendas Constitucionais (PEC) estão lá, no Congresso Nacional, engatilhados e prontos para serem disparados a qualquer momento, aguardando apenas alguma boa oportunidade.
Até mesmo os consagrados direitos sociais do Artigo 6º da Constituição Federal, de 1988, estão na mira destas ameaças[i]. Da mesma forma, a inviolabilidade do direito à vida, prevista no Artigo 5º da Constituição, vem sendo pisoteada pelos interesses de mercantilização dos direitos mais essenciais.
A figura que melhor representa esse tipo de oportunismo talvez seja a emboscada[ii], pois seus protagonistas parecem estar sempre de tocaia esperando a melhor oportunidade para atacar. A reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, que veio a público por autorização do ministro Celso de Mello, do STF, merece ser relembrada, estudada e muito bem analisada. Ela nos apresenta elementos extremamente importantes, não apenas em relação ao conteúdo daquelas manifestações emblemáticas, mas principalmente como reveladores de método, quando, por exemplo, o ministro da Economia diz: “tão distraídos (...), abraçaram com a gente (...) já botamos a granada no bolso do inimigo”, ou quando o ministro do Meio Ambiente afirma que “enquanto estamos neste momento de tranquilidade (...) porque só fala de covid (...) e ir passando a boiada”. Trata-se, evidentemente, de uma estratégia adotada para fazer passar o que se pretende quando as eventuais resistências estejam distraídas. Aliás, criar distrações parece ser uma estratégia política preferencial dos principais representantes do governo.
Agora, no entanto, estas artimanhas começam a ficar muito mais claras. Não há nenhuma dúvida, e a sociedade já percebeu isso, que o enfrentamento da crise exige o contrário daquilo que vem sendo feito. É preciso descongelar os gastos públicos, aumentar a capacidade de investimento do Estado, garantir renda emergencial, fortalecer o serviço público e melhorar a capacidade de atendimento do SUS. E, para isso, não há mais como esconder a necessidade urgente que temos de ampliar a tributação sobre os setores mais ricos e privilegiados da sociedade.
O pagamento da renda emergencial, por exemplo, não pode ter como contrapartida a precarização da saúde ou da educação, nem mesmo a redução dos salários dos servidores públicos ou o aumento de impostos para os mais pobres, mas sim, da tributação das altas rendas e das grandes fortunas dos super-ricos, que, historicamente, vêm sendo subtributados.
Revogando-se a isenção do Imposto de Renda sobre os lucros e dividendos distribuídos[iii] e aumentando os tributos sobre as altas rendas e sobre as grandes riquezas[iv], será possível elevar a arrecadação em quase R$ 300 bilhões, onerando apenas os 0,3% mais ricos da população e reduzindo impostos para a maioria dos trabalhadores e para as pequenas empresas.
Esses dados podem ser confirmados no material divulgado pela campanha TRIBUTAR OS SUPER-RICOS, promovida por mais de 70 organizações da sociedade civil. Uma das importantes medidas propostas pela campanha é implementação de uma nova regra de repartição de receitas da União com Estados e Municípios, que promoveria um aumento nas receitas dos Estados, em aproximadamente R$ 83 bilhões, e dos Municípios, em cerca de R$ 54 bilhões.
A saída para a crise, portanto, é fazer o contrário daquilo que produz e aprofunda a crise. É preciso interromper esse ciclo de desmonte das estruturas públicas e retomar o processo de construção do Estado social, tal como projetado na Constituição Federal, de 1988. Precisamos, urgentemente, reduzir as desigualdades sociais pela distribuição de renda e redistribuição das riquezas e pela promoção de políticas públicas includentes e promovendo a retomada do crescimento econômico com justiça social. Mas, antes de qualquer coisa, precisamos salvar vidas.
Publicado originalmente em: Antes de qualquer coisa, salvar vidas!