O último boletim Focus, documento do Banco Central (Bacen), que busca reunir as perspectivas do mercado sobre a economia brasileira, mais uma vez, revisa para cima sua projeção para a inflação em 2021, algo que parece ter se tornado rotina.
Desta vez, a expectativa é de que o IPCA, Índice de Preços ao Consumidor Amplo, um dos principais indicadores dos preços no varejo, medido pelo IBGE, chegue a 5,24% de alta em 2021. Trata-se de uma revisão considerável na previsão contida no boletim Focus, que, no início do ano, apontava para um IPCA na casa de 3,3% para 2021. A se confirmar a expectativa, a meta de inflação estipulada pelo Banco Central para este ano, cujo centro foi fixado em 3,75%, será rompida com folga, e o limite estipulado em 5,25% ficaria seriamente ameaçado. Cabe destacar que, em 12 meses, o indicador já se aproxima de 7%, o que indica que, provavelmente, veremos uma escalada da taxa Selic nos próximos meses, como forma de a autoridade monetária frear o avanço inflacionário.
A última vez em que o IPCA ficou acima do teto da meta proposta pelo Bacen foi em 2015, ano em que se deflagrou uma das crises econômicas mais severas pelas quais o Brasil já passou. A situação atual, entretanto, é bastante diferente. As perspectivas apontam para um cenário de retomada da economia (3,52% de crescimento do PIB, segundo o boletim Focus), o que não deixa de surpreender, dado o fundo do poço alcançado em 2020, por conta da pandemia, com queda superior a 4%. Em 2015, a trajetória da economia brasileira era inversa: recessão econômica, agravada sobremaneira pela intensa crise política em que embarcava o país. Desde então, a economia brasileira praticamente estagnou, para, em 2020, cair bruscamente, mais uma vez, em profunda recessão, desta vez por conta da pandemia.
A perspectiva de crescimento, nesse sentido, em nada deve ser tomada como indicativo de fim do ciclo de estagnação pelo qual passa o país, ainda mais se a taxa Selic vier a subir consistentemente. A se confirmar a previsão do boletim Focus, sequer a queda de 2020 será compensada. Diga-se de passagem, uma alta taxa de crescimento, no atual contexto, seria não apenas algo desejável, mas essencial, e a atual previsão se demonstra muito aquém dessa necessidade!
Sempre quando se fala em inflação, duas podem ser as razões: a demanda ou os custos. No primeiro caso, um aumento na procura por bens e serviços acima do incremento da oferta desses mesmos itens leva à elevação dos preços, por uma valorização quase que espontânea. São as famosas curvas de oferta e demanda da Microeconomia. No caso de uma inflação de custos, os preços se ajustam à valorização dos insumos. Dada a derrocada da economia em 2020, é impossível afirmar que a inflação hoje vivida, com alta no IPCA de 7% em 12 meses, seja devido a pressões pelo lado da demanda. O caso do atual momento vivido no Brasil, nitidamente, parece ser o de uma típica inflação de custos.
Diferentemente do que fez Dilma Roussef no último ano de seu primeiro mandato, o governo Bolsonaro, seguindo a cartilha ultraliberal de Guedes, não interferiu nos preços considerados essenciais para segurar a pressão inflacionária. Estamos, desde o início do mandato de Bolsonaro, assistindo a uma reação em cadeia, que se iniciou pela desvalorização da moeda brasileira, fazendo disparar o Dólar. Apesar de o principal motivo, aparentemente, ter sido o início da pandemia, causando insegurança de investidores internacionais e de o Banco Central ter atuado de forma relevante para atenuar a desvalorização cambial, o Real foi uma das moedas que mais se desvalorizou em 2020, e isso, como não poderia deixar de ser, teve impactos importantes no mercado interno.
Com a moeda desvalorizada, as commodities brasileiras, das quais se destacam o minério de ferro, a soja e a proteína animal, tornaram-se altamente atrativas no exterior, fazendo com que seus preços se elevassem consideravelmente. Item básico da alimentação brasileira, a carne subiu 35% em 12 meses, não apenas pelo aumento da demanda externa, mas também pela valorização da soja, que serve de base à ração animal e que teve sua cotação elevada em quase 70%. O minério de ferro, por sua vez, explodiu sua cotação em mais de 145%.
Do lado energético, o atual sistema de precificação dos combustíveis adotado pela Petrobrás, regulado pelas transações no mercado externo, fez com que a gasolina aumentasse por 10 meses consecutivos, acumulando 35,57% de alta em 12 meses, e o gás de cozinha, 21,11%. Em dezembro, a Aneel decidiu reativar o sistema de bandeiras, trazendo impactos diretos na tarifa de energia elétrica em todo o país, reflexos que ainda deverão ser sentidos nos próximos meses.
Por fim, o fechamento de 27 unidades da Conab pelo governo Bolsonaro teve efeito decisivo para a alta substancial dos preços dos alimentos, já impactados pela elevação dos custos de transporte e armazenagem. O ato do governo federal praticamente pôs fim aos estoques da companhia, criada justamente para regular, por meio de oferta e demanda, os preços internos dos alimentos. Os preços do arroz e do feijão, itens essenciais na alimentação dos brasileiros, principalmente os mais humildes, com isso, subiram acima de 60% em 2020.
Não é preciso grande exercício argumentativo para se convencer da tragédia humanitária na qual embarcamos, não apenas pela pandemia em si, mas também por decisões equivocadas, que aumentam o custo de vida, principalmente para os mais pobres.
Nesse sentido, a inflação preocupa, sim, e muito. A pandemia acirrou as desigualdades sociais. Quase 8 milhões de brasileiros perderam o emprego. Num contexto em que o desemprego já vinha alto, segundo o IBGE, o nível de emprego entre os brasileiros menos escolarizados caiu 20% em relação ao contexto de antes da pandemia. Houve queda de 2,2% na renda proveniente do trabalho. Como já é largamente sabido na Ciência Econômica, os efeitos redistributivos da inflação costumam concentrar renda, penalizando ainda mais as classes mais baixas.
Com uma taxa de crescimento muito abaixo do necessário, uma inflação sem controle e com a nítida ausência de uma intenção mais clara do governo Bolsonaro de tomar medidas que visem a combater a pobreza, possivelmente teremos mais um ano de concentração de renda e de pauperização da sociedade brasileira, consequência não apenas da pandemia, mas também de decisões equivocadas na condução da política econômica. As quase 500 mil mortes causadas pela pandemia são, de fato, um desastre humanitário sem precedentes na história brasileira, mas a parcela de responsabilidade do governo Bolsonaro não para por aí. As consequências trágicas de suas decisões na área econômica deverão ser sentidas por um bom tempo, com a consolidação do país no mapa da fome e a piora nos índices de desigualdade social, contexto em que será exigida uma forte atuação do Estado na forma de prestação de serviços públicos para atender as populações cada vez mais carentes. Infelizmente, contudo, não podemos contar com o governo Bolsonaro, que não demonstra nenhuma disposição em fortalecer a prestação de serviços públicos pelo Estado brasileiro, muito pelo contrário (vide proposta de reforma administrativa em tramitação no Congresso). Esta época deverá servir às gerações futuras como exemplo do que o radicalismo liberal na condução da política econômica, aliado ao descaso, negligência e incompetência na administração de uma crise sanitária, é capaz de fazer a uma nação como a brasileira.
Publicado Originalmente: Como o radicalismo liberal do governo Bolsonaro amplifica a desigualdade