A frase “O Brasil não é para amadores”, ou para iniciantes, atribuída a Tom Jobim, transmite em certa medida a ideia de que “as coisas” aqui são diferentes, ou vão além do que normalmente se interpreta ou espera, na linha do “a gente se vê” para dizer “não vamos marcar nada”.
Empresas como AMBEV, Coca-Cola, Itaú, Souza Cruz e Vale, dentre outras, constam como parceiros do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), autointitulado grupo de especialistas em tributação e finanças públicas (think tank), criado em 2015, com uma equipe de 2 diretores um pesquisador e uma secretária.
A Agência Câmara Notícias, em matéria publicada em 12/04/2019 sobre a proposta de reforma, fala o seguinte sobre a PEC 45/2019: “As mudanças têm como referência a proposta de reforma tributária desenvolvida pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), liderado pelo economista Bernard Appy e outros três especialistas” . Considerando que o CCIF foi criado em 2015 e a proposta já estava protocolada em 2019, tem-se um prazo aproximado de 3 anos, aparentemente pequeno para de tão desafiadora meta.
Apesar das alterações expressivas do sistema tributário depois da Constituição de 1988, como a não tributação das exportações de produtos primários (Lei Kandir) e a exclusão dos “salários” dos empresários, que são auferidos na forma de lucros e dividendos, do imposto de renda (há isenção desses lucros/dividendos), é comum ouvir-se a afirmação de que, como fruto de décadas de discussão, chegou-se à atual proposta de reforma tributária. No entanto, a atual proposta de reforma tributária foi redigida basicamente por Bernard Appy, com auxílio de 3 especialistas em 3 anos, sob patrocínio das grandes empresas parceiras do CCIF acima mencionadas, que seriam de fato os patronos e autores da reforma.
A proposta de reforma tributária do CCIF apresentada pelo Appy apresenta componentes basilares como: imposto de crédito amplo, eliminação das isenções, aprovação do Conselho Federativo (CONFED) e restituição automática de saldo credor. Nesse último ponto, restituição automática de saldo credor em até 60 dias, juntamente com a criação do CONFED como garantidor dessa devolução, provavelmente esteja o “coração” da reforma escrita pelo CCIF do Appy. Estariam os patronos do CCIF entre os possíveis grandes recebedores desses créditos? Aqui talvez devesse ser traçado um paralelo com os precatórios com a seguinte interrogação: os empresários pessoas jurídicas merecem esse tratamento diferenciado em relação às demais pessoas físicas da sociedade para receberem de forma automática eventual crédito/dívida do Estado em relação ao imposto, enquanto pessoas físicas são obrigadas a esperar pelos precatórios por anos ou até décadas?
Sob o enfoque dos créditos amplos no denominado “IVA moderno” dos especialistas, o CCIF e defensores da reforma citavam como contrapartida a eliminação da “proliferação” de benefícios empresariais através das isenções e regimes especiais, incluindo até a Zona Franca de Manaus. Além da eliminação dessas benesses empresariais e como argumento adicional, está a sempre lembrada simplificação do sistema tributário, que é vendida em qualquer parte do mundo como justificativa para alterações que nunca atingem o objetivo alegado. No final de contas, todos os sistemas tributários são complexos, especialmente os sistemas tributários dos países considerados desenvolvidos ou ricos, como Estados Unidos ou Alemanha. Nesse discurso a favor da reforma e eliminação das isenções, somou-se o cashback, uma espécie de “bolsa família tributário”, apresentado como instrumento corretor da eliminação das isenções ou benefícios a produtos consumidos pelas pessoas de menor renda, mas ao final na prática servindo para justificar e viabilizar o aumento generalizado da tributação sobre o consumo.
Após aprovação da proposta de reforma do Appy/CCIF na Câmara dos Deputados, vemos que, dos aspectos basilares acima citados, os créditos amplos e ressarcimento automático através do CONFED foram aprovados, e a eliminação das isenções foi rejeitada, mantendo-se a Zona Franca de Manaus, a tributação pelo Simples Nacional e alíquotas reduzidas e/ou zeradas para diferentes produtos, esvaziando o cashback.
Diz o texto aprovado que o patamar de arrecadação sobre o consumo será mantido (o que evidentemente não ataca o problema da elevada regressividade do sistema), de tal sorte que o dinheiro não some, ele troca de lugar. Uma reforma repercute de forma diferente nos setores econômicos. Nessa diferente repercussão, quem ganha (paga menos) e quem perde (paga mais) com a reforma aprovada?
Ganham principalmente as grandes empresas, e ganham duas vezes: ganham primeiro ao receberem um volume enorme de novos recursos através dos créditos amplos e devolução automática, principalmente os grandes exportadores (uma espécie de “Lei Kandir 2.0”); e ganham pela segunda vez com a manutenção das isenções e benefícios empresariais. Imagine p.ex. o aumento de créditos para os grandes exportadores, que, com a manutenção das isenções, não vão pagar nada e receberão a devolução dos créditos de forma automática, inclusive em dinheiro (imposto pago pelos demais), se for o caso. Sem contar que esse modelo pode desencadear uma proliferação de notas falsas, gerando créditos podres, com pagamentos indevidos pelo CONFED.
A importância e necessidade fundamental do CONFED para os patronos da reforma decorre justamente dessa devolução automática, ou pagamento, dos saldos credores aos empresários. Faz-se necessária a centralização da administração e arrecadação do IBS no CONFED para que, do pagamento do imposto efetuado pelo consumidor final, seja primeiramente descontada a devolução do saldo credor e posteriormente seja distribuído a Estados e Municípios o valor remanescente. Qualquer menção, lembrança ou correlação com os precatórios não é bem-vinda.
Para garantir o pagamento aos empresários dos créditos resultantes da base ampla, os autores da reforma não se importaram em suprimir competências tributárias de Estados e Municípios, concentrando-as no Conselho Federativo/CONFED, que inicialmente parece que tinha o nome de Agência Centralizadora, e no Conselho Administrativo Tributário (CAT), para os julgamentos. Considerando que o ICMS e o ISS são os principais impostos de Estados e Municípios e estes passarão a ser administrados pelo CONFED e CAT, os impostos remanescentes dos Estados e Municípios são tão residuais que, na área tributária, se poderia considerar o fim do federalismo previsto na Constituição.
Já vimos quem ganha com a reforma. Se a carga final será mantida igual, quem perde com a reforma aprovada na Câmara dos Deputados? Como o patamar de arrecadação permanecerá o mesmo através da calibragem da alíquota, o aumento de créditos principalmente para o setor empresarial e grandes empresas exportadoras deverá ser pago por outros setores. Destaca-se o setor de serviços, através da inclusão de fatos geradores novos, como aluguel, e elevação expressiva da alíquota aplicável, em função da migração do ISS para IBS (algo em torno de 12% para 27%). Além disso, também pagará mais a sociedade em geral, em função do aumento geral da alíquota, para manutenção do patamar de arrecadação e pagamento dos créditos gerados a partir da base ampla.
Resumindo: ganham principalmente as grandes empresas e grandes exportadores, pelo aumento dos créditos e manutenção das isenções; perdem principalmente o setor de prestação de serviços e a sociedade em geral, pela inclusão de novos fatos geradores e aumentos das alíquotas, aumentando a já expressiva e negativa regressividade na tributação sobre o consumo. Dessa forma, se confirma uma frase já meio conhecida sobre o sistema tributário brasileiro: quanto mais rico, menos imposto paga. O efeito da reforma proposta pelo CCIF e aprovada na Câmara segue na mesma direção, diminuindo o pagamento do imposto para os que ganham mais (grandes empresas/empresários), e aumentando o pagamento do imposto para as pessoas com menor nível de ingressos ou salário mais baixos. Talvez esse tenha sido o objetivo não declarado dos autores da proposta de reforma desde o início: diminuir a tributação dos ricos.
Agora voltando ao início: analisando a sugestão de eliminação das isenções tributárias incluída na proposta de reforma elaborada pelo CCIF através do Appy e assessores, se poderia deduzir que a proposta realmente visava a melhora do sistema tributário, pois a eliminação de isenções como a da Zona Franca de Manaus p.ex. seria um aumento de pagamento de imposto para as grandes empresas, como as que estão patrocinando o CCIF. Estariam “cortando na própria carne”, em prol da simplificação e aumento da eficiência do sistema. No entanto, passada a votação na Câmara, constata-se que justamente essa parte “do sacrifício dos mais ricos” não foi aprovada. Já na aprovação dos créditos amplos, CONFED e restituição automática teve 100% de aprovação.
Nesse momento caberia a pergunta: esse resultado da votação representa alguma surpresa ou já podia ser esperado? Seria possível alguém prever a provável ou praticamente certa não eliminação das isenções, como a Zona Franca de Manaus? Se o autor da proposta e equipe de três especialistas, patrocinados pelas grandes empresas parceiras do CCIF, não são amadores, eles teriam condições de ter previsto que a eliminação das isenções não passaria na Câmara e que a Zona Franca de Manaus seria mantida?
Se a resposta for sim, então a Reforma Tributária não é para amadores ou iniciantes. A inserção de eliminação das isenções na proposta de reforma teria sido feita já sabendo que não seria aprovada, facilitando a aprovação dos ganhos através dos créditos amplos e devolução automática, e garantindo a manutenção dos ganhos através das isenções.
E por que isso seria importante nesse momento? Porque temos outra reforma prevista, a reforma da tributação sobre a renda, que pretendem aprovar até o final do ano. O presidente da ABRASCA, associação criada para defender as posições ou interesses das companhias abertas, já manifestou pressa na apresentação da proposta de reforma da tributação sobre a renda. Os patronos do CCIF (AMBEV, Coca-Cola, Itaú, Souza Cruz, Vale, etc) e autores da reforma sobre o consumo aprovada na Câmara são também integrantes da ABRASCA. Se a proposta de reforma sobre a renda for generosamente apresentada por Bernard Appy e sua equipe de especialistas, patrocinados agora pela ABRASCA, é possível imaginar o que virá. Muito provavelmente será uma proposta com o mesmo efeito, embora não declarado, da reforma sobre o consumo: diminuição da tributação dos ricos.
Se essa nova proposta de reforma sobre a renda, que a ABRASCA elabora com auxílio do Appy e sua equipe de especialistas, for analisada por amadores ou principiantes, dificilmente identificará eventual efeito não declarado de diminuição da tributação dos ricos, como ocorreu na reforma da tributação sobre o consumo.