23/03/2009 REVISTA ÉPOCA
A intenção é diminuir o rendimento da mais tradicional aplicação financeira. Fazer isso sem desagradar a milhões de poupadores é uma equação difícil
Murilo Ramos. Com Mariana Sanches
Se há um ano alguém dissesse estar satisfeito com os rendimentos da caderneta de poupança, seria rapidamente tachado de ingênuo. Hoje, a mesma pessoa corre o risco de ser encarada como um investidor previdente. Com o colapso das Bolsas e a queda na taxa básica de juros pelo Banco Central, a rentabilidade dos investimentos em fundos atrelados à Selic não para de cair (leia o quadro abaixo). Antigo patinho feio das aplicações financeiras, a boa e velha caderneta de poupança voltou a despertar os olhares dos investidores ávidos por fazer o dinheiro render sem correr riscos.
As mudanças anunciadas pelo governo na caderneta de poupança vão mexer com quase metade da população brasileira 81 milhões(¹) é o total de pessoas com dinheiro em caderneta de poupança R$ 275 bilhões é o total de recursos aplicados em caderneta de poupança Essa situação deve durar pouco, porém. Na semana passada, em viagem aos Estados Unidos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva admitiu que a equipe econômica estuda mudanças nas regras da caderneta de poupança. “Terão de ser alteradas. Não é uma questão de escolha“, afirmou a ÉPOCA um ministro com gabinete no Palácio do Planalto. A fórmula de mudança ainda não está definida. Os assessores econômicos se debruçam sobre as alternativas possíveis, mas uma opção é certa: aquele sistema de cálculos que garante à poupança atualmente uma remuneração de 7,8% ao ano deve ser revisado para diminuir esse rendimento.
Não se trata de uma decisão fácil. A caderneta de poupança mobiliza os recursos de 81 milhões de brasileiros, num total de R$ 275 bilhões. Num esforço para garantir a credibilidade da poupança contra riscos e marés do mundo financeiro, o governo garante os depósitos até o limite de R$ 60 mil. É a única aplicação financeira que dispõe de tal seguro. Desde 1990, quando o então presidente Fernando Collor congelou os depósitos bancários, inclusive a caderneta de poupança, seus sucessores evitam qualquer intervenção radical, por seu impacto na vida de uma fatia imensa da população.
A visão de que é necessário mudar regras da poupança é antiga, mas tornou-se uma questão urgente com a crise econômica. Sem opções tão compensadoras no mercado financeiro, grandes investidores ameaçam invadir a poupança. Esse movimento poderá tirar receitas do governo, pois os ganhos da poupança são isentos de impostos. Os bancos, privados e estatais, também podem ser prejudicados. Eles embolsam compensadoras remunerações para administrar os investimentos financeiros de seus clientes. Nada cobram, porém, de quem aplica na poupança. Na semana passada, um estudo da consultoria Economatica mostrou que Banco do Brasil, Bradesco e Itaú, como consequência da crise nos bancos dos Estados Unidos, entraram na lista das cinco instituições financeiras mais lucrativas das Américas.
A queda de arrecadação tornou-se uma grande dor de cabeça para o governo. Fevereiro foi o quarto mês de redução seguida, e o Ministério do Planejamento teve de cortar, na semana passada, mais de R$ 21 bilhões do Orçamento deste ano (leia mais). Há ainda outro problema grave. A maior parte dos títulos emitidos pelo governo para rolar a dívida pública e realizar despesas está associada à Selic. “Com a queda da taxa básica, o dinheiro para a compra de títulos públicos tende a sumir e migrar para a poupança. O Banco Central pode ter dificuldades para baixar os juros no ritmo desejado na próxima reunião do Comitê de Política Monetária“, afirma o economista Fábio Giambiagi. Segundo ele, o governo já deveria ter encontrado a solução para o problema fora de um ambiente de crise econômica. Em 2005, ele alertava sobre a necessidade da redução dos rendimentos da poupança. “A queda da Selic, que era para ser boa, vira uma dor de cabeça. Está se fazendo da limonada um limão.“
Alterar as regras da poupança está longe de ser uma tarefa fácil para o Planalto, porque qualquer mudança envolve um universo de aplicadores muito atentos a seu dinheiro. Um deles é o paulistano Nivaldo Vechi, de 56 anos. Professor de mecânica, ele quer se aposentar com tranquilidade, aos 60 anos. Para isso, deposita R$ 1.800 todo mês na poupança. Há 20 anos, guarda lá quase toda a sua renda disponível. “O presidente Lula disse que protegerá os pequenos poupadores. Estou confiando nele,“ diz Nivaldo.
Segundo o economista José Matias Pereira, da Universidade de Brasília (UnB), mexer com o dinheiro da população implica riscos políticos. “Não é à toa que dizem que o bolso é a parte mais sensível do corpo humano. Os índices de popularidade do governo podem cair se algum passo errado for dado“, disse. Na semana passada, o ex-presidente e senador Fernando Collor (PTB-AL) disse ter sido um erro o bloqueio da poupança de empresas e pessoas após sua posse, em 1990. O que Collor chama de bloqueio ficou conhecido no período como confisco e ajudou a derrubar sua popularidade em meio às denúncias de corrupção que se sucederam. Vechi conhece bem essa história. Apenas há três anos, conseguiu reaver, em valores corrigidos, o dinheiro confiscado por Collor, depois de uma longa disputa judicial.
Entre as medidas em estudo pelo governo para alterar o rendimento da caderneta de poupança, nenhuma está à prova de contestações. A primeira alternativa seria diminuir o rendimento mínimo assegurado por lei, de 6,1% ao ano. O problema é que a mudança teria de ser aprovada pelo Congresso Nacional, e nenhum parlamentar quer voltar com ônus para o palanque eleitoral, em 2010. A segunda seria eliminar a Taxa Referencial (TR), que compõe o cálculo do rendimento da poupança. Só que a mesma TR é empregada no cálculo de financiamentos imobiliários e na correção do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Seria uma mudança drástica nas regras do sistema financeiro e no rendimento de todos os trabalhadores assalariados.
A hipótese mais aventada na semana passada seria atrelar a variação da poupança a determinado porcentual da Selic. Nesse caso, a lei que garante 6,1% de rendimento ao ano teria de ser mudada, com a introdução de mecanismos para travar o rendimento da poupança em caso de escalada da Selic. Outra solução seria tributar as aplicações de altos valores na poupança, o que parece em consonância com o discurso do presidente. “Vou reunir a equipe econômica para garantir a poupança para pequenos poupadores, e que outros que têm muito dinheiro façam outro tipo de investimento, como comprar títulos do governo“, afirmou Lula.
Independentemente da solução que for encontrada, o que o governo não pode fazer é desacreditar a poupança. Ela é para os brasileiros o que os investimentos nas Bolsas de Valores são para os americanos. Criada no Brasil há 148 anos por Dom Pedro II, a poupança sobreviveu até mesmo a planos econômicos desastrosos. Sua simplicidade e segurança são seus grandes trunfos. Lula sabe disso. Mal desembarcou no Brasil e pediu cautela no assunto.