30/03/2009 FOLHA DE SÃO PAULO
Para Everardo Maciel, ex-secretário da Receita, sentença revela má vontade e indisposição contra quem tem boa situação financeira
A condenação de quase cem anos de prisão imposta a Eliana Tranchesi, dona da Daslu, e a seu irmão Antônio Carlos Piva de Albuquerque é um fato isolado ou pode ser o início de uma tendência da Justiça para punir quem é acusado de fugir do pagamento de tributos? Para advogados criminalistas, tributaristas e ex-dirigentes da Receita Federal, a pena determinada para Tranchesi e seu irmão -os dois conseguiram liminares da Justiça e já estão em liberdade- representa decisão isolada de uma juíza (Maria Isabel do Prado, da 2ª Vara Federal em Guarulhos) e não deve ser exemplo para outras sentenças que envolvam crimes de sonegação fiscal.
A pena estabelecida para Tranchesi em primeira instância, de 94 anos e meio, deve ser reduzida até chegar à ultima instância da Justiça -Suzane von Richthofen, que matou os pais em 2002, foi condenada em 2006 a 39 anos de prisão-, mas o tamanho da condenação chama a atenção, dizem eles, por não se tratar de crime de homicídio, que geralmente tem as punições mais severas tanto no Brasil como em outros países.
Ao explicar a condenação de Tranchesi, a de seu irmão e a de outros cinco réus envolvidos no esquema de sonegação da Daslu, o procurador Matheus Baraldi Magnani, autor da denúncia feita à Justiça contra a butique, considerou que a sentença decorrente da Operação Narciso, que ocorreu em 2005, é um marco na história do Judiciário brasileiro. "O mundo passa por transformações, e a Justiça precisa acompanhar essas transformações. Na verdade, o abuso do poder econômico é a arma, a corrupção é a arma. Não é só o crime de sangue que pode estar associado a uma organização criminosa", diz o procurador. Ele aponta ainda o caso como prova de uma visão diferente no Judiciário. "Isso prova que, para vários setores do Judiciário, hoje em dia, um criminoso não é somente um desgraçado com um fuzil na mão, no topo de um morro", afirmou Magnani. O advogado Ives Gandra da Silva Martins, professor emérito da Universidade Mackenzie, diz que é a primeira vez que vê uma sentença da Justiça nesse nível para crimes cometidos com finalidade de sonegação de impostos.
Para o ex-secretário da Receita Federal e consultor tributário Everardo Maciel, a sentença dada à dona da Daslu é "completamente desproporcional". "Não conheço o caso específico, mas sinto que existe uma espécie de má vontade e indisposição contra pessoas que têm boa situação financeira. A condição financeira não deve ser critério para proteger, muito menos para perseguir." Everardo diz que a punição que envolve crime contra a ordem tributária só pode ser aplicada após concluído o processo administrativo fiscal -e já existe jurisprudência no Supremo Tribunal Federal sobre essa questão. "A privação de liberdade não pode ocorrer quando existe sentença passível de recurso, como é o caso. O que vejo é que, nesse caso, houve uma decisão isolada, que não deve ser entendida como tendência da Justiça", afirma Everardo.
Na avaliação do advogado Roberto Podval, a sentença dada a Tranchesi e a seu irmão "está fora do contexto e da lógica jurídica" no Brasil. "Para ser justa, uma decisão da Justiça tem de ser coerente, proporcional com o caráter da conduta criminosa. Uma pena de 94 anos para quem é acusado de sonegar impostos é colocar a importância do patrimônio acima da vida. A decisão da juíza no caso da Daslu, no meu entender, tem caráter de protesto, até porque a loja continua aberta e funcionando normalmente. O que a gente espera da Justiça é bom senso."
Bloqueio de bens
A sentença dada aos donos da Daslu, na opinião do advogado Rui Celso Reali Fragoso, abre espaço para um debate sobre a necessidade de rever as penas de restrição da liberdade que envolvam crimes contra o sistema financeiro. Sem especificar o caso da Daslu, Fragoso diz que, em caso de sonegação fiscal, seria até mais apropriada uma sentença para bloquear bens até a conclusão do processo.
"A punição nesses casos tem de ser mais dura do lado patrimonial do que do de restrição da liberdade. Pena de 94 anos é tão desproporcional que acaba se transformando até em descrédito para a sociedade."
Walter Cardoso Henrique, presidente da Comissão de Assuntos Tributários da OAB-SP, questiona o fato de o Judiciário querer mandar um recado ao condenar uma pessoa a quase um século de prisão. "Será que é justo mandar esse recado em cima de um caso específico? Será que não significa punir demais uma pessoa para servir de exemplo? É esse o questionamento que deve ser feito", afirma Henrique. (29/3)