30/03/2009 UNAFISCO PORTO ALEGRE
Palestra de Alberto Amadei Neto - Auditor-Fiscal da Receita Federal
Seminário “LOF em Debate: Administração Tributária e Interesse Público“
Auditório da Delegacia Sindical do Unafisco em Porto Alegre
04 de Abril de 2008
Sobre o tema que convoca este seminário, a Lei Orgânica do Fisco, eu tomei o cuidado de ler os 209 artigos dessa proposta, que seria a proposta da “Categoria e da Administração“, e li também, atentamente, os 259 artigos da Lei Orgânica do Ministério Público. Confesso que quando terminei a leitura de ambas veio-me à memória uma frase do Rubem Fonseca, de seu romance intitulado Agosto, onde ele diz o seguinte: “Nada temos a temer exceto as palavras“. Pois é disso que se trata. É preciso desvelar, evidentemente, o que tem a LOF.
Mas um outro sentimento me acometeu. E isso realmente me preocupa. No dia 05 de outubro de 2008, nós estaremos comemorando vinte anos da Carta de 88. E muita gente do Rio Grande do Sul e muita gente do Ceará estiveram lá entre 86 e 88. Havia motivos, em 05 de outubro de 1988, para fazermos a grande comemoração que, de fato, fizemos. Nós conseguimos esculpir na Constituição todas as garantias individuais. E mais, esculpimos, igualmente, a precedência da Receita Federal na área aduaneira, que se deu no contexto de uma disputa antológica com a Polícia Federal. Então eu percebi, dentro do Congresso, o que significa fazer a disputa política quando queremos fazer valer as nossas posições. Não fora o trabalho do UNAFISCO, desenvolvido nos idos dos anos 80, e nós estaríamos numa situação muito pior do que aquela em que nos encontramos hoje.
E por que eu falo da Constituição de 88? É porque logo depois da Constituição de 88 esse país passou por um dos momentos mais dramáticos de sua história recente, que foi a chegada de Collor ao poder. Lembro, é bom que tenhamos isso em mente, que o primeiro ato do Governo Collor foi rebaixar a Secretaria da Receita Federal a Departamento, Departamento da Receita Federal. Recordem que naquele começo dos anos 90, estava-se iniciando a chamada ofensiva neoliberal em toda a América Latina. Collor encarnava essa ofensiva.
Vamos traduzir essa ofensiva neoliberal. Vou recorrer aqui a um texto de 1995, que gosto de utilizar, para que a gente entenda o processo histórico, e permite-nos chegar a LOF, pois é a isso que pretendo chegar. Essa LOF é um fantasma que sai do início dos anos 90 e reaparece, vinte anos depois, para nos assombrar. Assombrar naquilo que é mais fundamental: são as nossas atribuições. É o maldito compartilhamento que desde sempre os neoliberais tentaram impor.
Atentem para o que está dito pela Cláudia Costin, Ministra do MARE, Ministra da Reforma do Estado do Governo Fernando Henrique, numa palestra proferida na Fundação Konrad Adenauer: “Nós temos que adotar um conjunto de medidas de retirada do Estado no sentido de desregulamentação“. Mais adiante: “Vamos ter de avançar para esse Estado ágil, leve, flexível. E ainda: “O que temos é um perfil alocativo da mão-de-obra muito ruim e definições de cargo demasiado restritas, que a Constituição engessou ainda mais. Não se pode, por exemplo, ter ascensão funcional. Não se pode ter mobilidade. Eu não posso tirar pessoas de uma carreira e passar para outra. Por isso, a gente tem de investir maciçamente em ampliar as definições de cargos profissionais mais polivalentes“. Eu espero que esse tipo de consideração, feita lá em 1995, 13 anos atrás, identifique as digitais e o DNA desse compartilhamento de atribuições com outras carreiras, a fusão dos fiscos e, mais do que isso, o ataque à categoria dos Auditores-Fiscais praticada pela administração.
A coisa mais importante diante de um impasse, para diminuir os riscos, é você identificar claramente quem são os seus adversários. Nos anos 90 nós soubemos identificar quem eram os nossos adversários. Os nossos adversários foram aqueles que rebaixaram a Secretaria da Receita Federal a Departamento e nós não poupamos esses adversários, nós os enfrentamos sistematicamente. Isso significou algum tipo de mudança dentro da organização.
Agora, eu quero dizer o seguinte em relação aos colegas: não posso falar em má-fé, retiro a má-fé dessa discussão, mas devo falar, no mínimo, em ingenuidade. Quando aqui foi apresentada a LOF e seus princípios, falou-se em compartilhamento com a administração das atribuições do cargo de Auditor-Fiscal. Diria que os colegas da categoria que participaram da definição desse princípio foram ingênuos. Já a Administração da Receita não foi ingênua. A atual cúpula da Receita estava lá no início dos anos 90. Devo contar um pouco da história da Receita para que vocês compreendam o que aconteceu.
Quando fomos rebaixados a Departamento, o Fundo Monetário Internacional sugeriu em um trabalho reservado, classificado, a autarquização da Receita como recurso para a alavancagem da arrecadação tributária no país - a carga tributária naquela época estava em 20% do PIB, havia um processo de desobediência civil na sociedade e o Governo Collor minguava em matéria de recursos orçamentários; o caixa estava baixo. Então, uma parte da Receita Federal entendeu que a idéia de autarquia era a salvação da lavoura e, articulando com o Fundo Monetário, decidiu-se por essa opção, decidiu-se pela autarquia, cabendo ao Fundo Monetário a missão de enquadrar a equipe econômica e conseguir os recursos necessários. Uma outra banda disse o seguinte: no momento da crise, no momento do risco, você não pode dar um salto no escuro. A autarquia significava um salto no escuro. O Wellisch, Luís Fernando Wellisch, era o Secretário da Receita àquela época, era oriundo do Banco Central. Numa grande reunião, em que tomei parte, pois então presidia o Conselho de Delegados Sindicais do Unafisco, pude ouvir dele: “olha, a organização não é minha, eu sou do Banco Central, vocês é que vão ter que suportar a organização e as dificuldades nos dias seguintes, portanto o que vocês decidirem para mim estará bom“. Tarciso de Medeiros, Secretário Adjunto, um homem muito ponderado, muito equilibrado, estabeleceu o seguinte critério: quem defenda a autarquia, defenda-a com unhas e dentes; quem entenda que a autarquia é nefasta, defenda a posição contrária com unhas e dentes. Nós nos reuniremos dentro de uns 3 meses e vai ficar de pé a proposta que conseguir responder aos nossos anseios. Bem, no debate a autarquia foi fragorosamente derrotada. Ela não trazia nenhuma vantagem, ela apenas acenava com vantagens, porém nós ficávamos desprotegidos dentro do Ministério da Fazenda, privados das garantias do que nós possuíamos. A autarquia era um salto no escuro. Então, depois de uma ampla discussão, com a participação de todos, enterramos a autarquia. Quando eu terminei de ler a proposta de LOF, a autarquia ergueu-se diante de mim, ela estava ali na minha frente, novamente. O cadáver que enterráramos tornara-se insepulto, com todos os riscos e com todos os perigos que trazia.
Mas, mais do que isso, naquela autarquia, mesmo os colegas que a defenderam tiveram mais cautela, tiveram mais pudor em não compartilhar as nossas atribuições. E aqui no caput das apresentações, no preâmbulo do regramento, se está entregando o compartilhamento. Eu diria que quem aceita isso, não quem propõe, insisto, mas quem aceita tal proposição, o faz de maneira irrefletida, ingenuamente. Quero que os senhores que defendem essa posição se responsabilizem pelo sepultamento de nossa categoria funcional, porquanto isso significa atirar contra o coração daquilo que chamamos o valor da nossa carreira.
A administração não é ingênua, os administradores não são ingênuos, o que está por detrás da atual administração da Receita para poder fazer valer o compartilhamento das atribuições é exatamente a busca tenaz da concentração, em suas mãos, do poder de fazer. Hoje ela tem o poder de dirigir, contudo ela não tem o poder de fazer e aí existe um truque que é muito sofisticado, mas é fácil de ser identificado. Eles confundem, procuram confundir competências com capacidades. E é isso que permite que digam o seguinte: essas competências do Analista e do Auditor são até certo ponto semelhantes, são concorrentes. Ao deter o poder de fazer, dispor da competência de fazer, posso transferir, independentemente do que venha a estar mais ou menos definido em Lei Ordinária, as capacidades de fazer. No marco legal atual, o administrador da Receita depende fundamentalmente, para fazer ou deixar de fazer, de tudo aquilo que compõe e que está definido como competência do Auditor-Fiscal. Não pode transferir aos técnicos aquilo que já ouvi alguns delegados falarem: que, no dia-a-dia do trabalho, gostariam de repassar a qualquer funcionário, inclusive estagiário, se fosse possível, a execução das tarefas.
Se advertirmos que o fundamento da reforma do Estado é tornar o Estado mais barato, e isso está no portal da definição da reforma do Estado, vamos verificar que lá do Planejamento, com os modelinhos para estipular o reajuste salarial, pode até vir um aumento agora, mas ele tem que apontar na curva, ao longo do tempo, para uma redução do salário real médio.O que está sendo feito nesta proposta piramidal, com o sistema de travas para você chegar ao topo da carreira? Na verdade, se está criando a possibilidade de, ao ingressar na carreira pela base, como regra geral válida para todos, nela permanecer a maior parte da vida funcional, com salário mais barato, e pouquíssima gente chegando ao topo. Façam uma conta com lápis e papel de padaria. Fácil concluir que, na média, o salário, e portanto o custo dessa máquina, vai ficar reduzido. Do ponto de vista do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão não há outro caminho para obter-se esse resultado que não seja através da depleção da despesa de pessoal. É esse o caminho que eles estão adotando. Eles estão tornando o Estado mais barato.
Agora, a nossa categoria entregar aquilo que exigiu 20 anos de luta? É importante que as pessoas tenham consciência de que isso que está sendo cedido, uma vez que se admita esse compartilhamento, significa jogar na lata do lixo os últimos 20 anos de defesa das nossas atribuições. Eu diria que o quê a cúpula da Receita está fazendo é uma infâmia, porque os colegas que ora conduzem mais essa investida estavam lá nos anos 90 e, agora, eles não travaram esse debate, sequer o permitiram, da forma como se processou naqueles idos, quando a administração da Receita Federal, através da sua Secretaria Adjunta, colocou às claras as propostas existentes e abriu o debate. Atualmente, não vimos ser travado, em nenhum fórum, um debate qualificado sobre o significado das mudanças que se ensaiam. Por que isso não está sendo feito? Porque, nesse cenário, o titular da Receita, e de resto toda a cúpula da Receita, teria que vir a público para dizer: eu quero, sim, as tuas atribuições, as vossas atribuições, algo que nunca conseguimos nos últimos 20 anos. É por isso que o debate não é travado! Se, por insânia, sandice, ou outra espécie de falta de juízo, aceitarmos concorrer nas nossas atribuições com o órgão, estaremos celebrando aqui, nos últimos 20 anos, a vida, paixão e morte de uma categoria.
Qual é o problema? Eu falei aqui na vida, paixão e morte e lembrei-me de um ritual católico. Todos que praticam, vivenciam, o ritual católico em algum momento, ouvem a palavra: “Não nos deixei cair em tentação“. Lembro aqui de Epicuro, 340 antes de Cristo, na Grécia, que professa exatamente o contrário: “Quando a tentação se apresentar, aproveite-a porque ela vai embora“. O que está sendo colocado aqui é mais ou menos o seguinte: temos que ceder a esta tentação, temos que fazer a LOF, temos que ir para o Congresso. Não tem coisa nenhuma. Quantos dispositivos constitucionais têm eficácia contida - falo do salário mínimo - ou sequer tem validade? Essa pressa, esse açodamento, tem uma outra intenção. É aproveitar, aproveitar o reformismo triunfalista do Estado em nome da eficácia, da eficiência, da agilidade, para seq¨estrar atribuições que nós temos protegido nos últimos 20 anos.
Dois colegas se manifestaram aqui, ontem, e eu pensei: acho que não tenho mais nada que falar. Eu acho que a gente poderia fazer o debate rapidamente. Foi o Sérgio Horn, quando fez uma intervenção aqui, e o Tadeu Matosinho, quando fez a sua intervenção, também aqui. Ele usou uma linguagem figurada de colocar esta LOF numa cesta de lixo. Eu disse a ele que ele havia tomado a minha figura, minha figuração. Eu ia colocar um cestinho aqui, de ferro, porque não podia ser de plástico, acender um fósforo e queimar essa LOF. O que está sendo cometida com essa LOF é a traição da categoria. A categoria está sendo traída naquilo que ela tem de mais caro, naquilo que ela protegeu com mais vigor. Pergunto, caso o titular da Secretaria da Receita Federal tenha atribuições concorrentes, qual a atribuição que ele vai disputar? Serão as mais importantes ou serão as menos importantes? Serão as mais estratégicas ou serão as menos estratégicas? Se alguém me responder que o Secretário da Receita vai ficar com as atribuições menos importantes e as atribuições menos estratégicas, somente nesse caso eu tenho que conceder a idéia de que nós podemos começar a discutir. Mas não é para isso!
Senhoras, senhores, colegas, quem não se lembra do que acontecia no Banco Central quando os Auditores do Banco Central identificavam as lambanças do Banco Econômico. Tudo o que se fazia em termos de investigações sobre operações e esquemas financeiros de triste tradição em nosso país, a auditoria do FonteCindam, dos Cacciolas da vida, estava tudo identificado. Porém, os Auditores não tinham competências, as atribuições não eram deles, eram do órgão, e assim todos os autos de infração lavrados foram parar em gavetas. Vocês se recordam da CPI do Banco Central? Maria Tereza Grossi, a Chefe de Fiscalização do Banco Central, que o Ministério Público pediu a prisão? O que faziam com os relatórios dos Auditores? Não faziam nada, nenhuma punição era aplicada às ilicitudes e a seus autores. E deu no que deu. Nós estamos caminhando numa seara, num “sendero“ que não é luminoso, abraçando uma perspectiva sombria para a categoria. Então, eu talvez tenha que esclarecer para vocês onde estão os perigos. Mas para isso é preciso um pouco de história.
Embora não tivesse planejado abordar esse ponto, ontem à noite, conversando com alguns colegas, disseram-me: Alberto, conte essa história, para que o pessoal mais jovem, para o pessoal mais novo que não vivenciou esse período da Receita, saiba mais sobre sua instituição. Eis um bom argumento, sábio e eficiente. O melhor desempenho, o melhor desempenho tributário da Secretaria da Receita Federal foi nos anos de 93 e 94, e essa conclusão se impõe por qualquer metodologia que se empregue em sua análise, independentemente do índice de referência. E o que, afinal de contas, é desempenho? Desempenho define-se assim: sem mexer nas alíquotas ou na base de cálculo obtém-se um incremento da arrecadação em termos reais. Esse período eu chamo de Sálvio/Osiris, 93 e 94; é nesse período que a gente recupera o “status“, sem artifícios e sem recorrer a uma etiqueta que nos figurasse na condição de autoridade. A autoridade que fizemos prevalecer foi a dos argumentos, argumentos da Lei. Vencemos o embate com a área econômica e, de Departamento, recobramos a condição de Secretaria novamente. Vencemos o debate com os generais, os almirantes e os brigadeiros das Forças Armadas. Havia o teto de Almirante de Esquadra que prendia a nossa remuneração. Nós arrebentamos esse teto e a nossa categoria, pela primeira vez, atingiu o patamar de 4.000 dólares mensais de remuneração. Basta saber que recebíamos menos de 2.000 dólares para se ter uma idéia do quanto uma negociação calcada na força de nossas posições pode produzir. Isso é para que os novos conheçam como foi a luta para a construção do nosso patamar de remuneração. E o desempenho da arrecadação em termos reais era extraordinário, sem manipulação da legislação. Era o final do governo. Ciro Gomes substituíra o Ministro Ricupero na crise das parabólicas, época em que ficamos durante nove meses em operação padrão sem ser recebidos pelo Ministro Ricupero. O Ciro Gomes assume o Ministério e a primeira categoria que ele recebe é a dos Auditores-Fiscais, a primeira audiência depois da posse é com a nossa categoria. Nós negociamos com ele a saída do movimento desde que uma portaria interministerial, envolvendo a Ministra-Chefe da Casa Civil, o Ministro da Fazenda, com reconhecimento do Presidente da República, nos desse 30 dias para negociar e 60 dias para definir uma solução para o movimento, senão a gente o retomaria. E foi feito isso. E foi tudo cumprido. Mas nós amarramos dois Ministros de Estado e o compromisso pessoal do Presidente da República para a saída da mobilização. Quando termina o governo, o Ciro promove um encontro no qual agradece o desempenho e a lealdade da categoria, que para ele foi muito importante, e afirma que se no início tinha uma imagem ruim da categoria, isso não se confirmara, e a impressão indelével que levava consigo era a da qualidade dos colegas. Então ele dá um aviso reservado, que agora não mais precisa ser reservado. Ele diz o seguinte: olha, vocês se preparem porque o Malan vai degolar a cúpula da Receita - o Malan era Presidente do Banco Central. Vai degolar porque a cúpula da Receita não aceita, bota o pé na parede, não permite que eles façam a política monetária que eles querem fazer, de facilitação ao mercado financeiro. Qual o sentido disso? Se você tem um extraordinário desempenho em termos de arrecadação, de que modo se justificaria tal substituição, qual a necessidade de um outro órgão? A política monetária - vocês vão entender porquê há uma blindagem, hoje, da Receita pelo Banco Central -, o Malan degola a cúpula da Receita, avisa que vai degolar a cúpula da Receita e caem todos os coordenadores, caem todos e cai o Secretário. Segue-se um Secretário da Receita que fica oito anos. Como é que esse Secretário chega na Receita? Aí eu vou contar o outro lado da história.
A Receita Federal está dentro da política fiscal passiva. O que vai funcionar é a política monetária, para fazer o chamado ajuste estrutural. Para fazer a política de metas de inflação. Para fazer a política de sustentação a política fiscal tem que ser passiva, ou seja, a política fiscal tem que ser um poste. Tudo bem. Agora mais um pouco na frente. Eu estou num Seminário sobre crime organizado, para o qual fui convidado, em Washington. Estive lá com a então juíza Denise Frossard, com gente do Ministério Público. Crime Organizado e Lavagem de Dinheiro no Brasil, era esse o assunto. E havia um jornalista, correspondente do Estadão, José Casado, hoje na revista Época, isso em 95. Ele disse assim: você conhece o seu Secretário? Não, não conheço o Secretário, respondi, eu sei que ele é filiado ao PFL, é a única coisa que eu sei. E que veio para fazer o serviço de degolar a cúpula da Receita e enquadrar a Receita como parte da política fiscal passiva para servir à política monetária. Ele, então, disse-me assim: ele é o homem mais forte da República depois dos Ministros de Estado. E de onde vem essa força dele? O PFL fez duas exigências ao Presidente Fernando Henrique Cardoso, no patamar ministerial. Ele considerou a Procuradoria Geral da República e a Receita Federal órgão com a mesma hierarquia dos Ministérios, e exigiu esses dois cargos. E por quê? Qual a razão? A palavra era a seguinte: primeiro, a Receita Federal e o Ministério Público derrubam o Presidente da República. São capazes de derrubar um Presidente da República; segundo, o PFL tinha sido o partido mais atingido na CPI dos anões do orçamento, e os parlamentares temiam a Receita Federal, especialmente o Osíris. O Osíris brinca que não precisou de guarda-costas porque era muito alto, muito forte, mas não faltaram ameaças em relação ao Secretário. E o PFL foi quase destruído, especialmente o PFL ligado aos usineiros. Então, a expressão é esta, tem que botar um cabresto, um bridão, na Receita Federal. Foi isso o que aconteceu!
Só que o bridão é inútil se você não o controla. De nada adianta montar no cavalo e não segurar as rédeas. Hoje quem segura as rédeas são os Auditores. As rédeas são controladas pelos Auditores. O compartilhamento significa colocar as rédeas na mão do administrador. Não é só a ingerência político-partidária que pode ocorrer. Não é isso. É perfeitamente possível cooptar. Quanta gente não corre a se filiar a partido político quando se aproxima uma mudança de governo para ficar mais “ao feitio“ de quem comanda na vez. Você pode capturar alguém dentro. Os funcionários do Banco Central, muitos deles, estão capturados pelo setor financeiro. Então, quando são impasses, perigos e riscos - fundamentalmente é disso que se trata - você opera a máquina de fora!
Eu diria o seguinte: é uma ingenuidade achar que nesse contexto a LOF vai sair melhor do que ela vai entrar. Deixem-me dizer para vocês uma coisa com pureza d’alma, não acreditem em mim, façam o seguinte, não acreditem em mim, convidem para vir aqui, no dia 05 de outubro, o Procurador-Chefe do Ministério Público, para que ele mesmo vos conte a história da LOF do Ministério Público no Congresso Nacional. O Rio Grande do Sul tem uma história impressionante dentro do UNAFISCO, é um dos locais que mais contribuíram. É no Rio Grande do Sul que, em 86, aparece um grupo que estuda e faz a discussão do fisco. É com Fernando Marsillac que se parte para o Congresso Nacional para conseguir as garantias que nos restam, que nós ainda temos. Comemoremos aqui os 20 anos da Carta de 88, fazendo um Seminário, e tragam aqui quem tem algo a dizer sobre os desvãos congressuais. Segurem essa LOF até outubro de 2008. Não a deixem sair!
O Ministério Público sai da Constituição de 88 e a LOF, a Lei Orgânica 75, é de maio de 93. São cinco anos. Eles ficaram 5 anos dentro do Congresso disputando a LOF deles. Cinco anos! E em que contexto histórico? No contexto histórico em que o Ministério Público, com Aristides Junqueira, derrubava o Presidente da República acusado de corrupção e desmantelava o esquema do PC Farias. Era um momento onde toda a sociedade brasileira apoiava o Ministério Público. Onde o Ministério Público com o frescor da nova Carta de 88 se mostrava aliado de toda a sociedade brasileira. Não era só o Ministério Público a favor da sua autonomia, era a sociedade brasileira que vira no Ministério Público um aliado para tirar o presidente corrupto, o presidente enlameado do esquema PC. Afastar do Planalto os morcegos negros, não era isso? O jato do PC Farias era assim chamado, o jatinho que sobrevoava o Planalto para fazer a compra dos parlamentares e do apoio político da base de sustentação do governo. Bem, quem quiser ler esse livro, de Lucas Figueiredo, cujo título é “Morcegos Negros“, saberá, isso é mostrado pelo jornalista, como funcionava o hangar de pagamento; o pagamento era feito no hangar onde ele aterrissava em Brasília. Bom, o Ministério Público tinha a sociedade a favor.
Tragam aqui Francisco Teixeira, o Presidente da Associação Nacional do Ministério Público, grande batalhador nas trincheiras do Congresso, e perguntem a ele, se ele tivesse que encaminhar hoje a Lei do Ministério Público, acaso o faria? Certamente, ele não o faria hoje. Porque mesmo com tudo a favor, naquele período, ele teve uma oposição permanente da Polícia Federal, comandada por um delegado, Romeu Tuma, hoje Senador da República. Foram os grandes adversários do Ministério Público no marco da edição da sua Lei Orgânica. Ele chega a dizer que num momento aconteceu algo que nunca tinha acontecido na história do parlamento brasileiro, sumiu um substitutivo, não aparecia o substitutivo. Não havia nota taquigráfica e ninguém achava aquilo lá dentro. E estou dizendo como é que funciona o Congresso. Depois, num acerto que foi feito com as categorias que representavam a Polícia Federal, mitigou-se um dispositivo que dava mais competência ao Ministério Público e a lei saiu.
Mas jamais os Procuradores da República, se tivessem que discutir a sua Lei Orgânica, o fariam hoje. Por quê? Porque nós estamos no tempo da Lei da Mordaça. O Fernando Henrique queria amordaçar o Ministério Público, enquadrá-lo. O José Dirceu chegou a querer enquadrar o Ministério Público, também. A Lei da mordaça tem a ver com isso, com a necessidade de controlar esses irresponsáveis. Essa gente precisa ficar sob controle, é assim que pensa grande parte da elite política do Brasil.
Então, o contexto para nós é o pior contexto histórico. Se nós estivéssemos discutindo aqui, primeiro, não a LOF para compartilhar nossas atribuições, o que demonstra que o próprio ponto de partida já está equivocado, talvez se pudesse admitir a discussão. No entanto, mesmo ela saindo redondinha, de acordo com os nossos sonhos, no Congresso ela já enfrentaria enormes dificuldades, porque lá não se encontram só os parlamentares que defendem o serviço público. Lá você vai encontrar os parlamentares que representam a classe econômica dominante, as classes dirigentes na economia. Se puderem concentrar o poder na mão de um só homem, que é o titular da Receita, para fazer os acertos, para proteger determinados setores, não hesitarão. Quais são os setores que vão ficar desprotegidos? Na situação atual, o Ministério Público já identificou venda de legislação, sem que esse Secretário tenha poderes para fazer e desfazer. O que vocês acham que vai acontecer, na hipótese de concentrarem o poder? Não sejamos ingênuos. Para usar a expressão do Fábio Konder Comparato: “não sejamos ridículos.“ Se a Constituição de 88 é mitigada sistematicamente, o que farão com uma Lei Ordinária?
Eu vou dar um exemplo que me veio a mente para mostrar o que se faz com os compromissos escritos, quando a vontade política é diferente. E é um exemplo histórico que eu acho que vale a pena rememorar, é da Segunda Guerra Mundial. Ninguém discorda que Winston Churchill é o maior Primeiro-Ministro da história da Grã-Bretanha, considerado, aliás, o principal estadista do século XX. Na sua autobiografia, chamada “A Aproximação da Tempestade“ - além de ser um homem inteligente é um escritor - ele relata perceber a ascensão de Hitler quando Hitler era um simples deputado do Partido Nazista e ele alertava o Parlamento Britânico que o Partido Nazista, embora minoritário, tinha uma capacidade impressionante de mobilizar as massas, de seduzir as massas, de persuadir o povo alemão de que sua opção, sua saída, era pelo Partido Nazista. E recomendava que se tomassem as providências para que ele não ascendesse ao poder. E o Parlamento Britânico, com Chamberlain, não dá conta disso. Acharam que ele estava falando um monte de asneiras. Bom, quando a besta ganha corpo e consegue invadir a Renânia, depois a Polônia, aí o Parlamento Britânico começa a perceber que havia um problema, que aquela invasão podia chegar à Ilha. A Grande Ilha. A partir daí, começam a ouvir o que o Churchill tinha a dizer, que não tem conversa possível com Hitler. Hitler tem de ser derrotado, tem de ser eliminado. É necessário que declaremos guerra a ele enquanto ele ainda não tem todas as forças. E o Parlamento Britânico diz: nós estamos saindo da Primeira Guerra Mundial, temos a Liga das Nações e vamos acertar um compromisso com ele, um compromisso escrito. Vamos usar os punhos de renda, a diplomacia, para tratar com ele. E Chamberlain vai a Berlim, donde retorna com um documento histórico, assinado, manuscrito, lavrado a bico de pena. Hitler assegura não alimentar ambições expansionistas, absolutamente não. Assume o compromisso, afirma querer apenas recuperar as terras que foram tomadas à Alemanha na Primeira Guerra Mundial. E mais, o que pretende é resgatar a auto-estima do povo alemão, não havendo impedimento a que assuma o compromisso de renegar qualquer idéia expansionista. E o Chamberlain regressa a Londres, desembarca do avião com esse documento histórico que traz consigo. A primeira coisa que ele faz, ao chegar, é pegar aquele compromisso e descer sacudindo-o, exibindo-o a todo o povo britânico. Desce as escadas do avião aplaudido pelo povo e diz: a paz está garantida!
Muito cuidado com os compromissos dessa LOF.