31/03/2009 GAZETA MERCANTIL
Com alguma ironia, pode-se dizer que a gestão de Alan Greenspan no Federal Reserve Board (Fed), o banco central dos EUA, de 1987 a 2006, invocava para si as orientações de Joseph Schumpeter.
O economista austríaco formulou ideias como as que seguem: ninguém além do empresário inovador precisa de crédito; inovação é a adoção de novas combinações de fatores de produção que resultam em novos produtos, os quais "ensinam" os consumidores a querer aqueles novos produtos; os fundos para o crédito não decorrem de poupança, mas sim são criados "do nada", por títulos e papéis cuja garantia são os próprios títulos e papéis; garantias reais a ser dadas em caução de empréstimos podem ser adquiridas por empréstimos anteriores; e a concessão de crédito é primordial em relação à existência de caução. Mais ainda: só o crédito e o empresário inovador geram desenvolvimento e fazem a sociedade avançar em relação à estática relativa e idealmente equilibrada do sistema econômico ("fluxo circular").
Duas observações a esse nariz-de-cera. A primeira, para esclarecer a ironia: Schumpeter falava do empresário industrial, de novas combinações de fatores que geram processos produtivos e tecnológicos, produtividade, novos produtos destruindo antigos ("destruição criadora"), tudo resultando em ganhos de poder de compra e de renda nacional. Ou seja, trata-se da ideia moderna e difundida dos bancos de desenvolvimento, embora a leniência na questão das garantias não seja tão praticada. Greesnpan, diferentemente, injetou crédito farto nos criadores de produtos do mercado financeiro, com espirais de derivativos sem qualquer conexão com a produção sendo tratadas como inovações produtivas e tecnológicas.
A segunda observação, para dar dissonância ao acorde irônico: Schumpeter, depois de dez anos de vida acadêmica, foi presidente de um grande banco - que quebrou e dizimou a fortuna pessoal do economista. Não sei dizer se por adotar seus preceitos ou por outras malversações.
Muitas das medidas que vêm sendo adotadas pelos governos mais atingidos pela crise financeira atual têm inspiração na ideia de crédito farto, de emissão de dinheiro e de dispensa de garantias concretas aos empréstimos. Aposta-se na geração de valor e na criação de elos econômicos capazes de tirar a economia do mergulho em que ela se encontra. Diferentemente do pregado por Schumpeter, porém, não se está financiando a inovação e a dinâmica produtiva. Mas não é para menos: não estamos diante da situação de sair do equilíbrio para a dinâmica de desenvolvimento. Estamos em pleno ar, doidos no espaço, caindo num poço cujo fundo não é exatamente o país das maravilhas. É caso mais de paraquedas do que de jato.
A concepção de equilíbrio e de fluxo circular de Schumpeter, aliás, é a parte mais incômoda de sua teorização. Ainda que ele advirta para o contorno típico-ideal (como no método de Max Weber) da formulação, o pressuposto de que o sistema econômico tende ao equilíbrio e, mais do que isso, a girar em torno de si com a complementaridade perfeita entre produção e produto, inspirou muito do que nas décadas recentes foi adotado por vários governos em nome da desregulamentação e da plena liberdade dos fatores de produção. A formulação, chamada de liberal, clássica, neoclássica e neoliberal de acordo com a época, lembra a ideia de eterno retorno (Friedrich Nietzsche) e a da ausência de história (Jorge Luis Borges) - e é ela mesmo uma demonstração dessa ameaça demoníaca, dado que volta e meia reaparece e é adotada como política vencedora, desde a pedra fundamental de Adam Smith.
E que quase sempre resulta em crises como a atual. Aliás, paralelos com a economia liberal que vigorou até os anos 1920, a crise de 1929 e as políticas intervencionistas, protecionistas e nacionalistas que se seguiram, de matriz keynesiana, marxista e - vejam a ironia e a dissonância sem fim dessas histórias -- schumpteriana, têm sido feitos por muitos analistas. Muitos deles defendem justamente a recuperação de alguns desses princípios como saída mais sólida para a crise.
No caso do recente pacote americano de US$ 1 trilhão em emissão de moeda e compra de chamados títulos podres, por exemplo, críticos como Paul Krugman sustentam exatamente que, em lugar de dar mais drogas aos dependentes e acabar com os abalos de abstinência, o governo deveria recuperá-los do vício por meio de aquisição, saneamento e revenda das empresas financeiras - uma política de redução de danos paulatina, digamos.
Mas os dependentes têm gostado da emissão de droga. O mercado subiu muito nos últimos dias.
kicker: Não estamos no ponto de sair do equilíbrio paraa dinâmica do desenvolvimento
LUIZ GUILHERME PIVA* - Diretor técnico da LCA Consultores. Próximo artigo do autor em 22 de abril)