08/03/2009 REVISTA NACIONAL TELENEWS
Da mesma maneira que algumas reformas domésticas podem se transformar em verdadeiros pesadelos quando mal-administradas, uma reforma tem tirado o sono do setor de telecomunicações. Trata-se da reforma tributária, em debate no Congresso Nacional e com grandes chances de tornar- se real em 2009. Além de, em linhas gerais, não reduzir a carga tributária, o conjunto de projetos alterando o sistema de impostos brasileiro pegou de surpresa o setor de telecomunicações com a inserção de uma proposta que pode mudar totalmente o panorama tributário deste setor no futuro.
O pesadelo das teles, e de outros segmentos relacionados com tecnologia, é a tentativa de alteração do inciso IX do artigo 155 da Constituição Federal.
A proposta do relator da reforma, deputado Sandro Mabel (PR/GO), pode inaugurar a incidência do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) “sobre operações com arquivos eletrônicos não elaborados por encomenda, inclusive os que contenham imagem, som ou programas de computador, ainda que transmitidos eletronicamente”, com a inclusão deste texto na Constituição Federal.
É na falta de especificação de quais são esses “arquivos eletrônicos” onde incidirá o ICMS que mora o perigo para as teles. Especialistas em questões tributárias são unânimes ao avaliar que este item teria impacto sobre o setor de telecomunicações, afetando potencialmente o comércio de diversos produtos hoje classificados como Serviços de Valor Adicionado (SVA).
Os impactos
Apesar de afetar as teles, o alvo original da inserção é na verdade o setor de software. A idéia dos legisladores, segundo a consultoria da Câmara dos Deputados, era recompor o universo tributário na venda dos “softwares de prateleira” - ou seja, aqueles produzidos de forma unificada e comercializados no varejo principalmente -, alterado pela evolução tecnológica. Com a consolidação da internet como uma espécie de “mercado virtual paralelo”, as empresas passaram a comercializar esses softwares via download, reduzindo a arrecadação de impostos cobrados no “mercado real”.
“Acontece que hoje o que é tributado no software é o meio físico, e não o produto em si. Então, o que se discute agora é se o software de prateleira tem natureza de mercadoria ou não”, explica a advogada tributarista Ana Cláudia Utumi, sócia da Tozzini Freire Advogados.
Mas Ana Cláudia não tem dúvidas de que, da forma como o texto foi redigido, o escopo da reforma ultrapassa os limites do ramo de software. Seria possível interpretar que a comercialização de ringtones ou vídeos pelas operadoras celulares, por exemplo, passaria a ser tributado com ICMS definitivamente.
Para Waine Peron, gerente da Consultoria Tributária do escritório Braga & Marafon Advogados, é um grande problema inserir um texto de interpretação tão ampla na Constituição Federal.
“Sem dúvida nenhuma esta é uma matéria que precisa ser regulamentada, mas não acho que deveria estar no texto constitucional.
Isso poderia ser matéria para um projeto de Lei Complementar”, avalia o advogado. Uma preocupação de Peron é o potencial impacto no futuro das transações virtuais. “Ao falar em ‘arquivos eletrônicos’ isso dá margem a uma interpretação além do que eu acredito que seja o desejo do deputado Sandro Mabel. Tem que se tomar muito cuidado com isso porque o futuro é esse (o uso de arquivos eletrônicos). Aliás, é o presente já”, pondera.
A cobrança
Mesmo abrindo margem para a cobrança de diversos SVAs, na opinião dos analistas, a incidência efetiva do ICMS, caso o texto seja aprovado como está, sobre cada um dos serviços adicionais prestados hoje pelas teles é uma incógnita.
O primeiro motivo dessa dúvida é que a proposta de Mabel não especifica quais produtos serão de fato considerados nessa tributação, optando apenas pela descrição ampla de que estão inseridos na regra arquivos que transportem “imagens, sons ou arquivos de computador”.
A definição concreta do que sofrerá cobrança ou não de ICMS, segundo os advogados, só deverá ser conhecida em regulamentação posterior.
Outro aspecto que levanta dúvidas é a natureza efetiva dos arquivos transmitidos dentro do universo de SVAs. Peron chama a atenção para o fato de que, na prática, muitos desses produtos não são nem mercadorias, nem serviços. “Existem algumas coisas que estão no limbo. Um toque de celular, por exemplo. Não é mercadoria nem tampouco um serviço. Na verdade, é um direito que está sendo cedido temporariamente.
Neste caso, estamos falando de direitos autorais, que não são nem produto nem serviço”, explica.
Essas sutilezas na análise caso a caso dos potenciais afetados pela proposta de Mabel teriam também o poder de abarrotar o Supremo Tribunal Federal (STF). Tudo porque a idéia é incluir este artigo na Constituição. E como matérias constitucionais são analisadas exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal, a inserção de um texto assim acabará fazendo com que a suprema corte passe, no futuro, a ser obrigada a decidir dilemas sobre especificidades, como o caso da natureza de um ringtone.
Softwares
A única certeza no momento é que se o texto permanecer o setor de software será o grande prejudicado. Colateralmente, todos os setores produtivos e os consumidores sentirão no bolso o resultado da constitucionalização da cobrança do ICMS sobre a comercialização de softwares por meio eletrônico. O deputado Júlio Semeghini (PSDB/SP) conta que o impacto no preço final dos softwares deve ser entre 5% e 10%, considerando a menor alíquota do ICMS praticada na comercialização de softwares de prateleira atualmente. Em alguns casos, o impacto no preço final pode chegar a 30% quando se leva em conta o cálculo “por dentro” do ICMS. Denomina- se assim quando o ICMS incide sobre o faturamento das empresas após a inserção de outros tributos, fazendo com que o impacto do imposto seja maior do que a sua alíquota nominal.
No caso das telecomunicações, por exemplo, um ICMS de 25% tem impacto aproximado de 33% no cálculo final. “Se esta proposta passar, ela destruirá toda a cadeia produtiva de software que está nascendo no Brasil. O resultado mais óbvio é que o software pirata voltará a crescer”, profetiza Semeghini. Não existem números na Câmara sobre o eventual impacto nas telecomunicações.
Desmobilização
Mas enquanto a bancada de parlamentares afinados com a realidade dos setores ligados à tecnologia da informação se mobilizava para tentar derrubar o texto proposto, a falta de movimentação de parte dos afetados chocou a Câmara dos Deputados. Estáticas no campo de batalha da reforma, as teles se comportaram como se ainda estivessem processando o choque de verem sua carga tributária, já elevada, aumentar ainda mais.
“Foi horrível. Faltou mobilização. O setor de telecomunicações está totalmente desmobilizado. É impressionante”, desabafa Semeghini, um dos líderes da tropa pela derrubada da proposta. Semeghini tem motivos para reclamar.
Com o apoio das empresas de software, as principais afetadas pelo texto proposto por Mabel, os parlamentares quase conseguiram retirar o texto em questão durante a votação da reforma na comissão especial, na segunda quinzena de novembro.
“Faltaram dois ou três votos. No fim, até Palocci apoiou a retirada e se colocou a favor do destaque”, conta Semeghini.
Referia-se a Antônio Palocci 23(PT/SP), presidente da Comissão Especial da Reforma Tributária, que teria, inclusive, declarado que há um comprometimento do PT para a exclusão deste artigo da proposta.
No entanto, comprometimento não tem a mesma força de um acordo partidário no Congresso Nacional. Sendo assim, o futuro da reforma nesse quesito continua incerto e só será definido com a votação do projeto no Plenário, onde será apresentado um destaque para tentar, pela derradeira vez, retirar este pedaço da reforma.
Em discurso no Plenário, o presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTI), deputado Walter Pinheiro (PT/BA), também alertou para os impactos negativos da medida, caso seja aprovada como está. “Não podemos tratar essa matéria como uma matéria qualquer. Não estamos conclamando isenção. Estamos conclamando o que é um incentivo a essa importante área do Brasil, que tem demonstrado enorme capacidade de crescimento em diversos lugares”, afirmou o parlamentar referindo-se ao setor de software.
Sem lobby
Para a advogada Ana Cláudia é visível a falta de união do setor no campo dos impostos, apesar de as teles já terem conseguido algumas vitórias. A consultora lembra que as teles conseguiram, por exemplo, impedir a mudança do regime tributário do PIS/Cofins no setor e manter a arrecadação cumulativa, menos impactante para este tipo de ramo (ver quadro para mais detalhes). “Mas parece que depois dessa vitória as empresas se desmobilizaram. Talvez não tenham acreditado na possibilidade de uma nova iniciativa de elevação da carga no setor”, avalia a advogada.
No banco de apostas do Congresso Nacional prevalece a impressão de que a história poderia ter sido diferente se o setor de telecomunicações tivesse encarado a briga desde o início. Com as concessionárias públicas mais ricas e poderosas do País, o setor de telecomunicações acabou derrotando a si próprio, na opinião de advogados e consultores legislativos: sem qualquer mobilização anterior sobre o tema “impostos”, foi pego de surpresa e não soube se articular para reverter a situação.
“O setor é extremamente desunido”, afirma uma fonte ligada às empresas e que participou das discussões da reforma tributária. Segundo esta fonte, o debate expôs três grandes problemas do setor quando o assunto é tributo: • A completa falta de especialistas neste tema na área de telecomunicações capazes de entender com antecedência o alcance das propostas apresentadas pelos parlamentares; • A inexistência de equipes voltadas para a negociação política; o famoso “lobby”; • A descoberta tardia de que o setor não compôs uma “bancada” parlamentar concreta, com habilidade para defendê-lo.
Esses três itens resumem bem a situação de um setor exposto a iniciativas nocivas em um ambiente de reforma. Normalmente, mudanças com a amplitude da reforma tributária costumam fazer “vítimas” nos setores desmobilizados politicamente. Isso acontece porque os parlamentares envolvidos na redação do projeto acabam sendo bombardeados por diversos segmentos e quem não aparece para se defender acaba saindo com saldo negativo no processo. Para se ter uma idéia da amplitude de uma discussão como a da reforma tributária, o relatório de Mabel levado à votação na Comissão Especial tinha 183 páginas.
Um indício do funcionamento dessa dinâmica é o fato de que, em princípio, o setor de telecomunicações não era o alvo do polêmico artigo. A meta era, e continua sendo, segundo os consultores que trabalham com Mabel, o setor de software.
A elevação tributária em telecomunicação teria sido uma espécie de “brinde”, só descoberto pelos consultores quando a polêmica já estava criada.
Distante do consumidor Mas além da ausência de aparato político para lidar com surpresas como esta, existe uma última constatação, reclamada pelas empresas: a falta de mobilização de órgãos de defesa do consumidor contra o aumento da carga tributária nos serviços de telecomunicação. Para especialistas em direito tributário este é o ponto nevrálgico nas teles. Apoio do consumidor se conquista com educação tributária e este aspecto ainda é falho no setor.
Serviços públicos, em geral, são bastante atrativos para a cobrança de impostos por se tratarem de ofertas de necessidade básica da população e, portanto, com alto índice de comprometimento dos consumidores na hora de pagá-los. Pensando nesta realidade e inconformado com a crescente sanha arrecadatória, o setor elétrico foi um dos segmentos com concessão pública que se mobilizou para elevar o nível de informação de seus clientes sobre a cobrança de tributos.
O setor tem hoje uma associação voltada para esta área, por exemplo. Nascido em 2000 sob o nome de Câmara Brasileira de Investidores em Energia Elétrica (CBIEE), o grupo mudou de título em 2006 adotando a nomenclatura de Acende Brasil. E mudou de postura também.
Com um projeto interno de ampliar a transparência no setor elétrico, o instituto criou um “impostômetro” que marca em tempo real em seu site a arrecadação do setor. Entrou na briga pela divulgação nas contas de luz de todos os tributos cobrados dos clientes e conseguiu aproximar-se do consumidor.
“Com a discussão de novas leis para o setor, em 2004, notamos que não havia mais necessidade de interlocução com o governo apenas”, conta Cláudio Salles, presidente do instituto. “Nosso papel é dar transparência a esta questão dos impostos para que a sociedade se mobilize fazendo a pressão correta sobre seus governantes.”. Até o momento, o setor elétrico não foi objeto de qualquer item específico na recente reforma tributária.
O embrião desse tipo de iniciativa existe no setor de telecomunicações. A Associação Nacional das Operadoras Celulares (Acel) tem cada vez mais se dedicado a analisar de forma crítica a carga tributária no setor, divulgando suas preocupações em boa parte de seus boletins periódicos. “No entendimento da Acel, essas novas disposições embutem o risco concreto de que os serviços de valor adicionado e as transmissões de conteúdo em geral, ainda que pela internet, passem a ser tributados com o ICMS”, alertou a associação em seu boletim de 14 de novembro, defendendo ainda a necessidade de redução da carga tributária nas telecomunicações. Apesar de iniciativas como esta, não se nota um movimento coeso dos demais ramos das telecomunicações na mesma direção.
Andamento Até o fechamento desta matéria, a Câmara dos Deputados não havia votado em Plenário o texto final da reforma tributária. Na última semana de novembro, o presidente da Câmara, deputado Arlindo Chinaglia (PT/SP), declarou que a votação deve ser realizada apenas em 2009 por conta da entrada em pauta de uma medida provisória com prazo vencido que precisará ser votada antes de qualquer outro projeto. A falta de acordo entre os partidos do governo e da oposição também tem reduzido as perspectivas de aprovação da reforma em 2008. Com a proximidade do recesso parlamentar, resta menos de um mês para que os setores afetados imprimam seus últimos esforços contra a proposta.
Para onde vai o dinheiro
Como todo serviço público, as telecomunicações são bastante visadas para a cobrança de tributos. Conheça abaixo os principais impostos, taxas e encargos que incidem sobre a atividade de telecomunicações:
ICMS - Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços Tem alíquota variável, conforme deliberação de cada Estado. Ao todo, existem mais de 40 alíquotas, mas na média a mais usual é a de 25%. No setor de telecomunicações esta alíquota também prevalece. Como o ICMS é calculado “por dentro” - ou seja, o imposto é aplicado após a inserção de outros impostos na base de cálculo -, o impacto final de uma alíquota de 25% é, na verdade, de 33% sobre o valor final da fatura.
COFINS - Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social Tem alíquota fixa de 3% nos serviços onde a arrecadação é cumulativa, como é o caso das telecomunicações. No regime cumulativo, cada pessoa jurídica da cadeia de prestação do serviço recolhe mensalmente o imposto sobre o faturamento auferido. No regime não-cumulativo, a alíquota é mais alta, de 7,6%.
PIS/PASEP - Programa de Integração Social/ Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Os dois tributos, cobrados dentro de uma única alíquota, servem como um distribuidor de parte dos ganhos para os trabalhadores, sejam eles do serviço público (Pasep) ou privado (PIS). A cobrança do PIS/Pasep segue as mesmas regras da Cofins. É comum associar as duas contribuições. No caso de regimes cumulativos, a alíquota é fixa em 0,65%. Em regimes não-cumulativos, o percentual sobe para 1,65%.
FUST - Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações Criado para apoiar a expansão dos serviços de telecomunicações, os recursos do Fust permanecem intocados, salvo iniciativas pequenas iniciadas em 2007 de baixo valor financeiro. A cobrança do Fust é feita sobre a receita operacional bruta das empresas, no valor de 1%. Por lei, essa contribuição não pode ser repassada para o valor final do serviço. Em contrapartida, os impostos federais (ICMS e PIS/Cofins) são excluídos da base de cálculo.
FUNTTEL - Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações Com o intuito de estimular a inovação tecnológica, recolhe-se 0,5% da receita bruta das empresas de telecomunicações, além de uma contribuição de 1% da arrecadação bruta obtida por eventos realizados por meio de ligações telefônicas. Assim como o Fust, não entram na base de cálculo do recolhimento os impostos federais.
TFI - Taxa de Fiscalização de Instalação Cobrada no ato de licenciamento dos equipamentos, essa taxa tem valores específicas para cada um dos serviços, conforme regulamentação do setor.
TFF - Taxa de Fiscalização de Funcionamento Assim como a TFI, segue tabela específica de valores para cada um dos segmentos das telecomunicações. Por definição, o valor da TFF é sempre metade do valor da TFI para cada serviço.