Notícias
01/04/2009 JORNAL DO COMÉRCIO
Há 20 anos, Constituinte foi um desafio à democracia no Rio Grande do Sul
por Paula Coutinho
A Constituição estadual completa neste ano duas décadas desde a promulgação, realizada na sessão solene do dia 3 de outubro de 1989, sob a condução do presidente da Assembleia Legislativa, Gleno Scherer (PMDB). A instalação dos trabalhos da Constituinte aconteceu em 26 de outubro de 1988, durante a gestão do deputado Algir Lorenzon (PMDB), presidente da Casa na época. O período era de efervescência política e os parlamentares tinham a missão de elaborar uma constituição democrática, a primeira depois da ditadura militar, encerrada três anos antes. "Fomos eleitos para esse fim. Nós estávamos ali representando o povo gaúcho", afirma Lorenzon.
Para garantir na prática o caráter democrático da constituição, os deputados recebiam proposições de entidades representativas da sociedade através de emendas populares. "Era importante ter a participação presente e permanente dos diversos segmentos da sociedade gaúcha. Sindicatos, associações de classe, federações, representantes de mulheres, GLS, negros, índios, o que surgisse nós aceitávamos e queríamos. Depois, claro, essa emenda seria analisada", acrescenta Lorenzon. O momento pós-ditadura criava um ambiente favorável à manifestação popular. "Imagina, era o final do regime militar e início da redemocratização. A abertura foi refletida ali", lembra o ex-presidente da Casa, mencionando o forte desejo da população de fazer parte do processo democrático.
Os representantes de entidades e de movimentos sociais faziam fila para protocolar as emendas na Casa. Ao todo, foram registradas 282 proposições populares, de acordo com o livro A Constituinte de 1989 - História da Constituição dos Gaúchos, publicado pelo Legislativo gaúcho. "Eu me empolgava de ver. Chegava na Assembleia às 5h20min da manhã e já havia fila de pessoas que queriam participar das reuniões de comissões, apresentar propostas", relata Lorenzon. Apesar do entusiasmo com a participação popular, os parlamentares se preocupavam com o pouco tempo para concluir os trabalhos, já que o prazo de um ano, a partir da promulgação da Carta Magna em 5 de outubro de 1988, estava se encerrando. Além do volume de emendas, o fato de se tratar de um processo inédito provocou situações curiosas, como a sugestão de temas que nada tinham a ver com o propósito de uma carta estadual. "Havia propostas tratando desde a qualidade da erva-mate até a construção de uma estrada", conta o ex-presidente da Casa.
Equipe da Assembleia acompanhou elaboração da Carta Federal
Presidente da Assembleia na primeira etapa da Constituinte, Algir Lorenzon lembra que designou um grupo de servidores para acompanhar, em Brasília, a Constituinte Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988. "Essa equipe estava permanentemente acompanhando o trabalho da Assembleia Nacional Constituinte: os erros, os acertos, os problemas surgidos", conta. Além da equipe destacada para atuar em Brasília, a Assembleia Legislativa precisou organizar uma espécie de força-tarefa para trabalhar na Constituinte estadual. "Tivemos de fazer treinamentos com os nossos servidores. Houve também um trabalho muito grande na área da informática, além de previsão de despesas, organização para acompanhamento dos trabalhos da Constituinte Federal", relata.
A força-tarefa contou ainda com a colaboração de todos os poderes do Estado. "Eles estavam lá dentro. O Judiciário designou magistrados para trabalhar internamente. Também estavam atuando o Ministério Público e o Tribunal de Contas. No Executivo, o governador Pedro Simon (PMDB) colocou à disposição todo auxílio necessário. Então, havia diversos setores da Procuradoria-Geral do Estado e das secretarias. Foi um trabalho para preparar o terreno", avalia Lorenzon.
Na Constituinte estadual, o presidente da Comissão de Sistematização - encarregada da organização de todas as propostas apresentadas - era o deputado Jarbas Limas, e o relator, o deputado Mendes Ribeiro Filho.
Os parlamentares encaminhavam as sugestões que chegavam através de uma subcomissão, depois passavam para a comissão temática e, por fim, eram submetidas à Comissão de Sistematização.
Na época, a Constituinte estadual chegou a ser criticada por se inspirar excessivamente no processo federal, o que transformaria a Constituição gaúcha numa cópia adaptada da Carta Magna.
Lorenzon argumenta que o processo constituinte estadual refletiu o momento de efervescência democrática daquela época. "Quem sabe a Constituição poderia ser bem melhor? Mas foi muito bom, refletiu exatamente o momento que o Brasil e o Rio Grande do Sul viviam", avalia.
O ex-deputado lembra ainda a dificuldade de conciliar interesses distintos. "Havia posições antagônicas em relação a diversos temas. Eram pressões de todos; dos que eram a favor, dos que eram contra. Isso ocorria na maioria dos assuntos; em uns mais, noutros menos. Tivemos questões do funcionalismo, da terra, dos órgãos estaduais. Então, havia pressão para todo o lado", pondera. Apesar das divergências durante o processo constituinte, Lorenzon considera que a elaboração e a promulgação da Constituição estadual foi o "ápice das posições democráticas do Rio Grande do Sul".
O texto final da nova Carta foi aprovado em plenário na sessão do dia 2 de outubro de 1989, véspera da promulgação, com 47 votos favoráveis e quatro contrários da bancada do PT. O presidente da Casa, Gleno Scherer, não votou, conforme norma do regimento interno.
Processo exigiu organização operacional e inovação tecnológica
Por trás da articulação política e do trabalho técnico da assessoria parlamentar, o processo da constituinte exigiu uma grande organização operacional. Essa tarefa coube à Diretoria Legislativa, na época conduzida pelo jovem de 28 anos Jorge Grecellé, que é o atual superintendente legislativo da Assembleia. "Foi um período muito dinâmico, de participação muito ativa da sociedade, com os plenários sempre lotados. A Casa se transformou no grande centro das discussões envolvendo o Estado. O nosso papel e das assessorias de bancada era dar a orientação técnica", lembra Grecellé.
No primeiro andar da Assembleia foi montada uma central de recebimento de proposições. "Vinham associações de servidores, de movimentos populares, de vilas", conta. Ao comentar um caso pitoresco, Grecellé lembra que um dos desafios era padronizar as proposições recebidas. "Uma vez veio uma entidade com propostas escritas em papel de embalar pão, e nós recebemos". A informatização do processo, com apoio da equipe da Procergs (Companhia de Processamento de Dados do Estado), foi decisiva para a sistematização dos trabalhos. "Aquilo tudo era inédito, porque o pessoal da Procergs não conhecia a Assembleia e nós não conhecíamos a área da informática. Passamos horas no Centro de Processamento de Dados explicando o que era emenda, projeto, lei, inciso, parágrafo", relata.
Com o andamento dos trabalhos, outro problema começou a preocupar a diretoria legislativa e os parlamentares: o prazo começava a ficar escasso para a conclusão da carta estadual.
"Em maio, foram votadas 12 mil proposições e ainda havia 5 mil para serem apreciadas. Como o tempo médio de votação era de 12 a 15 minutos, calculamos e vimos que iríamos até dezembro votando".
Surgiu, então, uma solução trazida por um inventor de Santa Cruz, Eliseu Cópio, que fazia placares para jogo de boliche. Ele criou o primeiro painel eletrônico do Brasil para votações em plenário. "Eram dois botões, SIM ou NÃO. O tempo de votação caiu para nove segundos", lembra.
Para Pont, mesmo com limitações foi possível avançar
O deputado Raul Pont (PT) é o único da atual legislatura que integrou o processo constituinte estadual. Além dele, a bancada petista era composta pelos deputados Adão Pretto, Selvino Heck e José Fortunati. Somente os quatro petistas votaram contra a proposta do texto final da Constituição. Segundo os registros da época, Pont justificou que o documento não era produto de um consenso, mas sim a expressão de uma maioria. "Usamos do direito de ser minoria", disse.
Ao comentar o processo, 20 anos depois, o deputado Pont destaca que os parlamentares estaduais estavam limitados ao que havia sido decidido na Constituinte Federal. "Trabalhávamos aqui por uma Constituinte delegada, nós não éramos um poder constituinte original", lembra. Segundo o petista, a Carta Magna demarcou o sistema político-eleitoral e algumas áreas que, afirma, eram urgentes que fossem deliberadas pelos estados, como o sistema de segurança pública. "A Constituição Federal vetou aos estados essa autonomia. Tivemos que repetir praticamente a mesma estrutura que vinha do regime militar, com os problemas seríssimos que ainda perduram", analisou.
Pont ressalta, no entanto, que houve alguns avanços importantes. "Fizemos o que era possível. Democratizamos o sistema de construção do orçamento. Nenhum outro estado foi tão longe. Criamos a figura da emenda popular, que não tem o mesmo rito da iniciativa popular", afirma, ao destacar que a emenda popular requer apenas duas entidades ou 500 assinaturas, enquanto a iniciativa popular exige apoio de 1% do eleitorado. O petista, que foi relator da comissão temática de orçamento e finanças públicas, também ressalta conquistas na questão dos serviços públicos, com a dotação de recursos em setores fundamentais, como as áreas da educação e da saúde, esta inclusive sequer tinha um indexador.
Opinião pública estava atenta ao debate
O jornalista João Carlos Terlera acompanhou todo o processo de elaboração e votação da Constituição estadual. Como colunista político, estava por dentro dos bastidores na editoria. "Passava o dia aqui (na Assembleia), tinha até uma sucursal", lembra. Terlera disse que ficou impressionado com a atenção dada à Constituinte pela opinião pública. "Foi uma participação surpreendente para a época. Nas comissões temáticas havia uma forte frequência popular". O jornalista afirma que o plenário da Casa ficou lotado durante as votações do texto final. "A Constituição foi apreciada capítulo por capítulo, em mais de 20 votações. A promulgação ocorreu em uma cerimônia fantástica", acrescenta.
Na opinião de Terlera, a Constituinte teve o "mérito de conseguir chegar a bom termo quando recém se retomava a democracia; com sindicatos poderosos e entidades de classe fazendo pressão para todo o lado". Havia temas tão polêmicos que os deputados acabaram fazendo uso de alguns artifícios. "Aprovavam o que era consenso, deixando os aspectos divergentes para regulamentação posterior. Outra estratégia era incluí-los como disposições transitórias. O objetivo era limpar o texto final, senão não conseguiriam promulgá-lo dentro do prazo", recorda Terlera.