25/03/2019 Imprensa Sindifisco-RS
Os gastos com Renúncias Fiscais assumem destaque cada vez maior em função de seu aumento expressivo nos últimos anos. Em 2018, somente no âmbito da União, os gastos com Renúncias Fiscais foram superiores a R$ 280 bilhões, ao que se deve somar os gastos dos governos estaduais e municipais, de tal forma que os valores excedem os 300 bilhões/ano.
A título de contextualização: a arrecadação total do Brasil é de aproximadamente R$ 2.000 bilhões/ano. Dessa forma, os gastos com Renúncias Fiscais já representam uma expressiva parcela de mais de 15% do total da arrecadação do país. Se adicionarmos a sonegação (desvio de impostos/recursos públicos antes da entrada no caixa do Estado – Corrupção Privada)[1], que está em torno de 600 bilhões/ano (30% do total), chegaremos à elevada cifra de 45% da arrecadação total (900 bilhões/ano) “destinados” aos beneficiários das Renúncias Fiscais e Sonegadores. O Bolsa Família fica ao redor de 25 bilhões/ano - 1,2% do total.
O dever da transparência administrativa está expresso no caput do art. 37 da Constituição Federal ao estabelecer que a Administração Pública obedecerá, dentre outros, ao princípio da publicidade. O art. 5º, inciso XXXIII reforça esse dever de transparência ao prescrever que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.
No surgimento do Estado democrático na antiga Grécia, a transparência era considerada um princípio basilar da democracia, com os cidadãos reunidos em local público para discutir e votar o orçamento. Da mesma forma, a transparência foi um meio de superar os obstáculos do Estado absolutista durante o progresso da sociedade moderna. A transparência é uma importante forma de chamar a sociedade para participar dos rumos do Estado e a possibilidade de exercer a fiscalização. Nesse sentido, pode-se afirmar, com certa segurança, que, nos dias atuais, quanto maior for a opacidade administrativa (intransparência) de um Estado, menor será seu nível democrático.
Assim como a opacidade administrativa compromete o Estado democrático, ela também compromete a eficiência e a moralidade das decisões tomadas pela administração, propiciando em certa medida a corrupção. A transparência se fortalece com o princípio da motivação, onde a atividade da Administração vem acompanhada dos fundamentos que ensejaram a decisão para evidenciar os fins que a administração deseja alcançar.
A Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/11) estabelece que o poder público deve proporcionar a publicidade das informações, disponibilizando voluntariamente por meio eletrônico as informações de interesse público. A regra passa a ser a publicidade, e o sigilo das informações passa a ser exceção. Como exemplo, pode-se usar o gasto com a remuneração dos servidores públicos. Com base na nova Lei e no princípio de que o interesse público prevalece sobre o interesse particular, foram liberadas as informações do contracheque de servidores públicos, antes tidas como particulares.
Estranhamente, quando passamos para o terreno dos gastos públicos com as Renúncias Fiscais, a interpretação da Lei e o destino das informações dado pelas Instituições é o oposto. Fazendo uma analogia com o contracheque dos servidores, verifica-se que, ao mesmo tempo em que se divulga os gastos com os servidores (pessoas físicas), não se divulga os gastos com Renúncias Fiscais (pessoas jurídicas). Nesse sentido, o princípio da privacidade estaria sendo usado indevidamente para evitar a necessária e obrigatória transparência pública nos gastos com as Renúncias Fiscais.
Na mesma linha, pode-se usar, também como exemplo, o gasto público efetuado com o Programa Bolsa Família. Os beneficiários do Bolsa Família (pessoas físicas) tem seus nomes publicados mensalmente, mas os beneficiários das Renúncias Fiscais (pessoas jurídicas) não são publicados pela Administração Pública. Fica evidente a interpretação divergente de acordo com o destinatário do recurso público. Aproveitando o exemplo, caberia, por analogia, alterar a denominação das Renúncias Fiscais para Bolsa Empresário.
A justificativa apresentada pela Administração Pública para a negativa da divulgação dos beneficiários do Bolsa Empresário é o art. 198 da Lei 5.172/66 (Código Tributário Nacional - CTN), que diz: “Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades”. Analisando o caput do artigo, pode-se afirmar que este se refere a informações econômicas ou financeiras do sujeito passivo, e não se refere a informações econômicas ou financeiras da Administração Pública. Os gastos com Renúncias Fiscais são efetuados pela Administração Pública, sendo informação da Administração Pública, e portanto não abrangida pela vedação do art. 198 do CTN. A empresa privada é somente a recebedora (Bolsa Empresário) dos recursos públicos, que são gastos do Estado.
Fazendo uma analogia com o Imposto de Renda Pessoa Física dos servidores (sujeito passivo): da mesma forma que o Estado divulga o gasto com os contracheques dos servidores e não divulga as demais informações (privadas) da declaração do IRPF, o Estado deveria divulgar o gasto com as renúncias fiscais/benefícios das empresas e não divulgar as demais informações (privadas) da declaração do Imposto de Renda Pessoa Jurídica.
Pode-se concluir, dessa forma, que na verdade o art. 198 do Código Tributário Nacional não impede a publicação dos beneficiários do Bolsa Empresário, pois os gastos públicos com as Renúncias Fiscais são informações obtidas diretamente da Administração Pública, e não “informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo”. Portanto, a interpretação dada pela Administração Pública ao art. 198 do CTN para fins de impedir a divulgação das Renúncias Fiscais está incorreta. Em vez da Administração Pública atuar pela transparência, nessa caso ela atua pela intransparência dos gastos públicos efetuados com as empresas através das Renúncias Fiscais.
Apesar dessa interpretação e do uso inadequado do art. 198 do Código Tributário Nacional, e dada a importância e forte demanda da sociedade pela publicação dos gastos com renúncias fiscais/benefícios fiscais (beneficiários do Bolsa Empresário), cabe incentivar iniciativas que visem inserir, de forma expressa, a obrigatoriedade dessa divulgação diretamente nesse artigo do CTN. Na prática, tem-se verificado que os projetos de alteração do CTN que visam exigir a divulgação das Renúncias Fiscais, com identificação dos beneficiários e respectivos valores, tem tido dificuldade de aprovação. Como exemplo, cabe citar o PLP 357/2013, PLP 377/2017 e o PLS 188/2014, todos arquivados.
Como novidade, pode-se citar a campanha do INESC “Só Acredito Vendo”[2] pelo fim do sigilo dos gastos tributários. Solicitam a apresentação de novo Projeto de Lei para pedir o fim do sigilo fiscal (opacidade administrativa) em relação aos gastos tributários de pessoas jurídicas (Bolsa Empresário). Busca-se obter a transparência, prevista como princípio da Administração Pública na Constituição Federal, em relação às empresas beneficiadas.
Concluindo, pode-se afirmar que caberiam duas frentes de ação:
Por exemplo: solicitar a divulgação, de forma idêntica, dos gastos com contracheque, Bolsa Família e Bolsa Empresário, pois os três beneficiários são “sujeitos passivos” pelo CTN);
Por exemplo: a campanha do INESC “Só Acredito Vendo”.
*Os autores integram o Coletivo de Auditores Fiscais pela Democracia (AFD), composto por Auditores da Receita Federal, Receita Estadual, Receita Municipal e Inspeção do Trabalho, comprometidos com a defesa do Estado de bem-estar, a democracia e a preservação e fortalecimento das instituições essenciais do Estado.
[1] Para uma distinção entre “corrupção pública” e “corrupAção privada”, consultar artigo em http://ijf.org.br/?p=3122