30/09/2019 Gaúcha ZH
Uma mudança de cultura está em curso na Receita Estadual. O órgão que, por décadas, apostou em metas de autuação a devedores para recuperar recursos decidiu deixar para trás o “paradigma do crime” – segundo o qual todos os contribuintes são potenciais sonegadores – para atuar de forma preventiva. O objetivo é reduzir o litígio e, assim, tornar mais eficiente a cobrança de ICMS.
Incentivada pelo governador Eduardo Leite, a guinada promete ir além do que já fizeram Estados como São Paulo e Espírito Santo, onde foram criados programas de valorização a bons pagadores. A intenção, por aqui, é pactuar regras claras com setores produtivos e com grandes empresas para descomplicar o sistema, atenuar a incerteza tributária que penaliza e afasta investidores e estimular o crescimento dos negócios.
Subsecretário da Receita Estadual, Ricardo Neves Pereira sustenta que “a maioria não tem a intenção de sonegar”. Muitas vezes, a inadimplência é fruto de erros que ganham a forma de contendas judiciais intermináveis. A ideia é identificar os equívocos de forma precoce e avisar os responsáveis para que tenham a chance de se autorregularizar, reduzindo a necessidade de autos de infração.
Na prática, nos primeiros oito meses de 2019, houve queda de 26% nos valores decorrentes de autuações (veja o quadro abaixo). Apesar disso, Pereira garante que o combate à sonegação não está perdendo espaço. Ocorreram, inclusive, mais operações de fiscalização.
– A autuação vai estar cada vez mais focada nos devedores contumazes, aqueles que montam esquemas para lesar o erário e a concorrência. Estamos conversando com Ministério Público e Procuradoria-Geral do Estado para trabalharmos juntos no combate à fraude estruturada – diz o subsecretário (leia a entrevista completa no fim do texto).
"A maioria não tem intenção de sonegar. Nossa obrigação é identificar o erro e avisá-los para que se regularizem. Quanto mais rápidos e preventivos formos, menor a necessidade de autuações."
RICARDO NEVES PEREIRA
subsecretário da Receita Estadual
Outra prioridade da atual gestão é destravar processos antigos, que foram contestados e aguardam julgamento administrativo para avançar. Em janeiro, a fila envolvia casos estimados em R$ 4 bilhões. Desde então, o volume caiu pela metade. Isso significa que cerca de R$ 2 bilhões poderão voltar a ser cobrados e, dependendo do desfecho, ingressar no caixa.
Embora reconheça que o plano embute riscos, Pereira projeta melhorias na arrecadação. Por enquanto, o volume de ICMS segue praticamente o mesmo dos primeiros oito meses de 2018. Com as alterações previstas no programa Receita 2030 – que aglutina todas as medidas traçadas –, o objetivo é ampliar os ganhos em R$ 1,7 bilhão ao ano.
inda que os resultados não sejam imediatos, o diretor-executivo do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), Bruno Negris, defende a iniciativa. Ele foi secretário estadual da Fazenda no Espírito Santo e afirma que, lá, a aproximação com os contribuintes deu resultado, ajudando o Estado a superar a crise financeira.
– É claro que a proposta foi sendo aperfeiçoada ao longo do tempo. Começamos esse trabalho em 2009 e fomos fazendo ajustes. Já se vão 10 anos. O Rio Grande do Sul também não vai resolver todos os problemas da noite para o dia, e é natural que seja assim, porque estamos falando de mudança cultural, mas o rumo definido está correto, sem dúvida – diz Negris.
"Pelo seu poder de polícia, o Fisco sempre caminhou na linha do litígio, mas isso já se provou insuficiente. É preciso caminhar de forma mais célere e próxima do contribuinte. O RS está no caminho certo."
BRUNO NEGRIS
diretor-executivo do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz)
A decisão de evitar a judicialização condiz com o que há de mais atual em debate no setor, reforça Eudaldo Almeida de Jesus, auditor fiscal na Bahia e coordenador-geral do Encontro Nacional de Coordenadores e Administradores Tributários Estaduais (Encat) – evento que reúne, três vezes por ano, representantes de todas as secretarias estaduais de Fazenda do país para discutir temas de natureza fiscal e tributária.
– Diminuir a litigiosidade é um caminho sem volta. Vai no sentido de mudar a mentalidade tanto do Fisco, quanto do contribuinte, que deixa de ser perseguido e passa a ser orientado. Já está provado que a discussão judicial leva anos e se mostra, muitas vezes, ineficaz – resume o especialista.
Plano tem apoio de entidades
As alterações propostas pelo Fisco são alvo da simpatia de entidades ligadas aos setores empresarial, comercial e de serviços. Entre órgãos que representam auditores fiscais e servidores da Fazenda, a expectativa também é positiva.
Presidente da Federação de Entidades Empresariais do Estado (Federasul), Simone Leite é uma das mais otimistas, em especial pela oportunidade de diálogo. Ela diz ter participado de mais de 20 reuniões na Receita Estadual nos últimos meses.
– Nunca tivemos uma abertura tão grande. No passado, éramos vistos como cifras ou como bandidos, mas a maioria dos empresários quer fazer o que é certo e busca segurança. Por isso, acredito que as mudanças podem funcionar – destaca Simone.
Para o presidente da Federação do Comércio de Bens e de Serviços do Estado (Fecomércio-RS), Luiz Carlos Bohn, as novidades soam “como música para os ouvidos”. Apesar disso, ele tem dúvidas:
– A Receita quer que a gente se preocupe apenas em emitir a nota fiscal, o que é ótimo, mas a discussão ainda está muito na teoria. Quero acreditar que dará certo.
À frente do Sindicato dos Servidores Públicos da Administração Tributária do Estado (Sindifisco-RS), Altemir Feltrin da Silva diz que “a modernização é muito bem-vinda”, desde que “mantenha os servidores motivados”.
– A gente espera por bons ventos para o Estado – sintetiza Silva.
Na Associação dos Auditores Fiscais da Receita Estadual (Afisvec), o presidente Marcelo Ramos de Mello elogia o plano, mas teme dificuldades pela falta de pessoal.
– Hoje, são cerca de 400 auditores em atividade, mas deveriam ser 830. E ainda temos cem colegas prestes a se aposentar. Não vai ser fácil tocar essas mudanças, que considero corretas, nesse cenário. É como ter vontade de Ferrari e motor de Fusca – conclui Mello.
“Precisamos superar o paradigma do crime”, diz subsecretário da Receita Estadual
Para Pereira, Estado deve migrar para "paradigma da confiança" e deixar de tratar contribuintes como potenciais sonegadoresGustavo Mansur / Palacio Piratini
Um dos idealizadores da nota fiscal eletrônica, que começou de forma pioneira no Rio Grande do Sul e se tornou uma realidade no país, o subsecretário da Receita Estadual, Ricardo Neves Pereira, classifica as mudanças em andamento no órgão como “uma revolução”. Servidor estadual e auditor fiscal de carreira, Pereira trabalha para que a instituição responsável pela arrecadação do Estado atue cada vez mais mais focada “em prevenção, orientação e cooperação”. A seguir, leia os principais trechos da entrevista.
Em junho, o governo lançou 30 medidas para simplificar e modernizar o sistema tributário. O que já foi implementado?
Uma das iniciativas em andamento é o Inova-RS. Fizemos reuniões com entidades representativas de setores e conversamos com grandes contribuintes, como Braskem, Petrobras Distribuidora, São João. Nesse diálogo, ficou claro o que as empresas querem de nós: certeza tributária.
"A grande sacada é que não estamos mais em posição reativa, mas proativa."
RICARDO NEVES PEREIRA
Subsecretário da Receita Estadual
Que medidas práticas foram tomadas?
Uma delas é a pactuação de regras tributárias com os setores. Por exemplo: em cooperação com a Agas (Associação Gaúcha de Supermercados), estamos elaborando um sistema de conformidade fiscal. A ideia é criar uma base de dados para dizer exatamente qual é o valor da tributação de cada produto, evitando o litígio. A grande sacada é que não estamos mais em posição reativa, mas proativa.
É uma mudança de cultura?
Sim, é uma revolução. Estamos criando grupos setoriais especializados que farão o acompanhamento econômico de cada setor, com metas de arrecadação. A ideia é priorizar a prevenção e a autorregularização, para identificar problemas de forma precoce e pedir às empresas para que se regularizarem. Não teremos mais metas de constituição de créditos tributários (autuações).
Isso não é arriscado?
A cobrança que a sociedade tem de fazer é: a Receita Estadual está conseguindo arrecadar aquilo que a legislação diz que deve ser pago pelos contribuintes? Essa é a meta. Se conseguirmos atingir a carga tributária efetiva, podemos ter zero autos de lançamento.
Há todo um debate, no Estado, sobre o combate à sonegação...
Se tu pegares qualquer manual de administração tributária de organismos internacionais, vais ver que isso (ter metas de autuação) é coisa do passado. Nenhum outro Estado tem essas metas. Estou tentando mudar esse paradigma.
"A autuação vai estar cada vez mais focada nos devedores contumazes."
RICARDO NEVES PEREIRA
Subsecretário da Receita Estadual
Não pode passar a ideia de que o governo estadual afrouxou a fiscalização?
Não, ao contrário. A autuação vai estar cada vez mais focada nos devedores contumazes, que montam esquemas para lesar o erário. Estamos conversando com Ministério Público e Procuradoria-Geral do Estado para trabalharmos juntos no combate à fraude estruturada, a que desequilibra o mercado. Criamos um grupo especializado de inteligência fiscal, com auditores, promotores e procuradores.
E os contribuintes que recolhem imposto errado?
A maioria não tem intenção de sonegar. Nossa obrigação é identificar o erro e avisá-los para que se regularizem, sem deixar passar muito tempo. Quanto mais rápidos e mais preventivos formos, menor será a necessidade de autuações. Quanto aos devedores contumazes, vamos inibi-los fortemente, buscando fazer acordos para diminuir o litígio. Precisamos superar o paradigma do crime.
As autuações a devedores caíram 26%. Isso não preocupa?
Nem um pouco. A sociedade não está preocupada com quantos créditos tributários estamos lançando, mas com quanto arrecadamos. Temos de investir em prevenção e autorregularização.
A meta de ampliar a arrecadação em R$ 1,7 bilhão ao ano está mantida?
O compromisso é atingir esse número e estamos trabalhando para isso. Se não tivermos condições neste ano, pretendemos recuperar a partir de 2020.