29/10/2019 Zero Hora
Com a aprovação da reforma da Previdência, na última quarta-feira (23), o Estado testemunha a debandada de servidores de alto nível técnico, especializados em gestão e considerados referências em suas áreas. A saída de profissionais com esse perfil, que ocupam postos de liderança e gerência, já é constatada em setores estratégicos de poderes e órgãos, que agora têm o desafio de suprir as lacunas.
Um dos motivos da onda de afastamentos é o fim da incorporação das funções gratificadas (FGs) às aposentadorias. Inicialmente, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) concluiu que a nova regra valeria de forma automática para todo o funcionalismo. A interpretação alvoroçou funcionários públicos.
Na tentativa de reter os quadros especializados, a PGE recuou e anunciou a decisão de divulgar parecer assegurando o direito adquirido. Até a tarde desta segunda-feira (28), o texto não havia sido publicado e as incertezas persistiam.
Às vésperas da votação da reforma, servidores apreensivos formaram filas nas repartições públicas estaduais para encaminhar seus papéis. Muitos já haviam se antecipado e deixaram as atribuições ao longo das últimas semanas. Embora os números não estejam fechados, a saída de gente gabaritada chamou a atenção.
AAssembleia Legislativa, por exemplo, perdeu seu superintendente-geral (e outras nove pessoas, em um quadro de 219). O Tribunal de Contas do Estado (TCE) ficou sem o diretor-administrativo. Os dois foram substituídos.
Será uma reposição difícil e cara, porque essas pessoas continuarão ganhando a mesma coisa, como aposentadas. Além disso, é uma mão de obra extremamente qualificada, que teve investimento pesado do Estado e que está sendo entregue pronta para a iniciativa privada.
TÚLIO MARTINS – vice-presidente do TJ
No Judiciário, servidores com décadas de casa e reconhecida expertise — entre eles um dos chefes da segurança — foram embora entre os dias 21 e 22, em clima de melancolia. O presidente do Tribunal de Justiça, Carlos Eduardo Duro, decidiu acelerar a liberação dos pedidos para acalmar os subordinados, temerosos da perda de direitos. Até a última sexta-feira (25), 68 solicitações haviam sido feitas em 14 dias.
Quanto ao Executivo, o êxodo ainda é contabilizado — em outubro, até a última sexta-feira, 861 pedidos haviam chegado à divisão que centraliza os dados (a média mensal registrada até então é de 500 a 600). Setores-chave do governo, como as secretarias da Fazenda e do Planejamento, figuravam entre as afetadas. Ambas as áreas contam com um grupo de profissionais especializados — com pós-graduação, mestrado e doutorado —, que compõe a nata do serviço público e é responsável por funções vitais ao funcionamento da máquina estatal.
Só na Fazenda, a Associação dos Auditores Fiscais da Receita Estadual (Afisvec) estima a provável saída de pelo menos 30 profissionais nas próximas semanas, entre eles o chefe da Delegacia Especializada, responsável pela arrecadação de ICMS dos grandes contribuintes. Já o Sindicato dos Técnicos Tributários (Afocefe) projeta a partida de cerca de 200 pessoas. Há dúvidas se o recuo da PGE surtirá efeito.
— Os colegas estão pensando a respeito. A meu ver, um parecer não se sobrepõe à Constituição. Creio que o governo deixou o problema acontecer e agora será difícil reverter. O pior é que são pessoas experientes, que não se substitui de imediato com a mesma qualidade — diz o presidente da Afisvec, Marcelo Ramos de Mello.
No caso da Secretaria de Planejamento, o quadro de inativos recebeu experts na elaboração de orçamentos e do plano plurianual (PPA), que estabelece diretrizes, programas e ações a cada quatro anos de governo. A lista é composta, por exemplo, por uma servidora do Departamento de Planejamento (Deplan) com especialização em administração pública contemporânea e mestrado em planejamento urbano e regional.
O Estado precisa se adaptar a essa situação, pois não há espaço para repor quadros diante da situação financeira que vivemos. É uma realidade que afeta o Rio Grande do Sul e o Brasil.
LEANY LEMOS – secretária de Planejamento
— Seis colegas importantes solicitaram aposentadoria nos últimos dias, sendo que somos 59 na ativa. A maior parte está no Deplan e no Departamento de Orçamento. Não está sendo fácil. Eles farão muita falta — lamenta Luciana Gianluppi, presidente da Associação dos Analistas de Planejamento, Orçamento e Gestão do Estado (Aapog-RS).
Reposição com mesma qualificação é desafio
Vice-presidente do Tribunal de Justiça do Estado, o desembargador Túlio Martins não só lamenta as perdas como reconhece que será complicado repor todas as vagas abertas.
— É um prejuízo enorme para o poder público. Será uma reposição difícil e cara, porque essas pessoas continuarão ganhando a mesma coisa, como aposentadas. Além disso, é uma mão de obra extremamente qualificada, que teve investimento pesado do Estado e que está sendo entregue pronta para a iniciativa privada. No Judiciário, estamos perdendo um pedaço da nossa cultura e memória. É uma lástima — lamenta Martins.
À frente da Secretaria de Planejamento, Leany Lemos tem dito que a corrida por aposentadorias já era esperada — os números costumam aumentar sempre que há reformas ou mudanças nas carreiras, como propõe o governo Eduardo Leite. Ela também reconhece dificuldades para preencher as lacunas, ainda que nem todos os pedidos de desligamento venham a se efetivar.
Muitos técnicos têm uma expertise que não se adquire do dia para a noite. São pessoas cruciais para elaboração, monitoramento e avaliação de políticas públicas.
MARÍLIA PATTA RAMOS – socióloga e professora da UFRGS
— O Estado precisa se adaptar a essa situação, pois não há espaço para repor quadros diante da situação financeira que vivemos. É uma realidade que afeta o Rio Grande do Sul e o Brasil. As pessoas se aposentam jovens, no auge de sua capacidade produtiva, e não são apenas os colegas, mas a sociedade como um todo paga esse preço — pondera Leany.
O cenário incerto é alvo de preocupação. Professora do curso de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFRGS, a socióloga Marília Patta Ramos lembra que a burocracia qualificada, de alto escalão, é fundamental para o desenvolvimento de Estados e Nações. A perda desses indivíduos, segundo ela, pode causar prejuízos.
— Muitos técnicos têm uma expertise que não se adquire do dia para a noite. São pessoas cruciais para elaboração, monitoramento e avaliação de políticas públicas. Até o momento, o governo não apresentou medidas claras de gestão que assegurem a mesma produtividade com um contingente menor de pessoas. Esse é um grande gargalo que precisa de respostas — avalia Marília.
Conforme Leany, a secretaria vem atuando “em várias frentes para que o Estado tenha uma política efetiva de gestão de pessoas” e prepara “amplo projeto” com apoio do terceiro setor, a ser lançado em 2020. Entre as iniciativas que já estão em andamento, a secretária destaca a reestruturação da Escola de Governo com foco na qualificação de servidores, a parceria com a Fundação Dom Cabral para a formação de lideranças e o programa Qualifica RS, voltado à seleção de pessoas para cargos estratégicos.
Por que servidores com cargos de liderança estão saindo
Em geral, servidores mais antigos e experientes que possuem postos de chefia ou de direção recebem funções gratificadas (FGs), que garantem valor extra no salário.
Até agora, bastava ter FG por cinco anos consecutivos ou 10 intercalados para incorporar o valor à aposentadoria. Com a promulgação da reforma da Previdência, em novembro, isso vai acabar.
O risco de perdas, mesmo para quem tem direito adquirido, levou servidores com cargos de liderança, que estavam aptos a se aposentar, a fazerem o pedido.
Muitos deles também recebem gratificação de permanência, paga aos servidores aptos a se aposentar considerados essenciais pela chefia. O governo do Estado quer reduzir o valor de 50% para 10% do vencimento básico.