01/03/2021 Denis Russo Burgierman/The Intercept
Tem um regime em vigor no brasil que nem nome tem, de tão invisível. Ele é secreto. Você pode ler a Constituição da primeira à última página sem encontrar uma só menção a ele. Lá no livro, o Brasil é uma república democrática, um estado de direito, livre, justo, solidário. Logo na primeira página está escrito que “todos os brasileiros são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Bonito isso.
O problema é que não é verdade, e isso fica evidente num momento de crise profunda como esta que estamos vivendo. Uns brasileiros são diferentes dos outros, perante a lei e perante o estado. Num Brasil valem certos direitos, leis, regras e protocolos, no outro valem outros; num há um tipo de infraestrutura, no outro quase não há; num o estado age de uma forma, no outro age de outra. Nesse regime que vigora no Brasil, uns brasileiros valem mais que outros, e o estado atua todos os dias ampliando essa diferença, redistribuindo riqueza dos pobres para os ricos, negando direitos a uns enquanto outros acumulam privilégios. Vigoram no Brasil dois regimes jurídicos simultâneos: são duas sociedades distintas, dois países no território de um só.
Minha opinião é que o Brasil só terá um futuro digno se for capaz de enxergar esse regime, a ponto de poder nomeá-lo, descrevê-lo e aboli-lo. E, nesse sentido, talvez estejamos diante de uma oportunidade histórica. Afinal, a contradição entre o Brasil sonhado na Constituição de 1988 e a brutalidade injusta desse país real que naturalizamos sem enxergar foi o que nos trouxe a este fundo de poço onde estamos hoje. O grupo que está no poder escancara essa contradição, ao rasgar a Constituição e agir de maneira abertamente brutal. Ao fazer isso, talvez eles tornem visível esse regime secreto.
Apesar do que diz a Constituição, grande parte do estado brasileiro está construída de maneira a garantir que os brasileiros não sejam todos iguais perante a lei. Ou seja, o estado está constituído de maneira inconstitucional.
Isso é visível para quem caminha pelo país. Basta olhar de relance para qualquer paisagem urbana. Muito rapidamente vai ficar evidente que, em alguns lugares, o estado provê infraestrutura de qualidade razoável – ruas asfaltadas, calçadas iluminadas, esgoto tratado, lixo recolhido, serviços públicos. Mas, na maior parte do território, não tem nada disso. O esgoto escorre a céu aberto, o lixo se acumula no espaço público, não há nenhuma calçada, nenhuma segurança, nenhum conforto, nenhum cuidado. Enquanto um pedaço do Brasil se acostumou a policiais educados, o outro lida com agentes que agridem, abusam e atiram antes de perguntar.
Nestas partes do país, o único serviço público à vista é o policiamento ostensivo – camburões passando pelas ruas com rifles para fora da janela. Se ainda resta alguma dúvida sobre a existência desse regime duplo que divide o Brasil em duas humanidades, basta se deter sobre as políticas de segurança pública para acabar com as ilusões. Até comandantes de forças policiais reconhecem que o protocolo da polícia nas áreas ricas das cidades é diferente daquele das áreas pobres, em flagrante contradição com a Constituição. Enquanto um pedaço do Brasil acostumou-se a policiais educados e, às vezes, até subservientes, o outro lida com agentes que agridem, abusam e atiram antes de perguntar. O Brasil é o país onde a polícia mais mata no mundo – e 75% de quem ela mata são negros.
Essa cultura dupla da polícia emerge de uma instituição moldada para tratar a população de maneira desigual. Prova disso é a existência no Brasil de uma política que não existe em nenhum país civilizado do mundo: o duplo ingresso. Há dentro da polícia dois tipos de ser humano, que não se misturam. Por um lado, há a massa pobre dos soldados e investigadores, que ingressam por um processo seletivo; por outro, há a minoria de oficiais e delegados, que entram por outro.
No Brasil, os pobres nunca são promovidos a oficiais ou delegados, por melhores policiais que sejam. E os ricos já ingressam mandando, apesar de recém-formados, num escárnio à ideia de meritocracia. Policiais subalternos não podem nem olhar nos olhos dos seus superiores. Eles são formados naturalizando o abuso – não admira que se tornem abusadores.
A polícia é um exemplo extremo do quanto esse regime que separa as pessoas está entranhado na estrutura do estado brasileiro, mas está longe de ser o único. Fala-se muito do quanto o estado brasileiro é caro e ineficaz. O que é menos comentado é o quanto ele é desigual – e é essa desigualdade que faz com que ele seja caro e ineficaz.
O SUS, um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, tem um orçamento incrivelmente pequeno, incomparável com qualquer país que tenha sistema semelhante. Não bastasse, um terço do orçamento da saúde pública é usado para financiar saúde privada. Planos de saúde e hospitais de elite como o Einstein e o Sírio-Libanês recebem bilhões em isenções fiscais.
No outro extremo, as partes do estado responsáveis por manter o regime dos dois brasis são tratadas como uma aristocracia, como mostra em detalhes este ótimo estudo “Aristocracia judicial brasileira: privilégios, habitus e cumplicidade estrutural” (fonte dos dados sobre salário dos parágrafos abaixo). A elite do serviço público brasileiro – juízes, promotores, procuradores, deputados, senadores, gente que escreve as leis e que as aplica – tem uma vida de luxos garantida até a morte, e depois dela, com pensões gordas para os descendentes. O sistema de Justiça e o sistema político do Brasil estão entre os mais caros do mundo, apesar da baixa qualidade de seu trabalho: e é lógico que a qualidade é baixa, já que aristocracias não têm empatia com a população.
A situação é tão absurda que beira à caricatura. Na França, um juiz iniciante ganha um salário semelhante à média salarial nacional. Nos Estados Unidos, onde há muito mais desigualdade, o salário de um juiz em começo de carreira vale três vezes mais do que o salário médio do país. Bom, no Brasil um juiz já começa ganhando 12 vezes mais que um mero mortal. Um juiz brasileiro ganha bem mais do que um juiz francês ou português, que pagam suas contas em euro.
E aí, por cima disso, ele recebe dezenas de pequenos privilégios, os chamados penduricalhos – presentes dados por eles próprios com dinheiro do estado, para que eles não tenham nunca nenhuma preocupação financeira. Auxílio-saúde, auxílio-livro, auxílio-educação, auxílio-creche, auxílio-terno – há mais de 30 desses, dependendo do estado. Curioso é que eles ganham dinheiro público para pagar escolas e creches privadas, ao mesmo tempo em que o estado subfinancia as escolas e as creches públicas, numa clara demonstração de que este país não entende a diferença entre direito e privilégio.
Por anos, por decisão de um juiz, todos os juízes do Brasil receberam todo mês um auxílio-moradia de R$ 4.377 – o dobro do rendimento médio total de um brasileiro. Eles ganhavam isso mesmo que tivessem casa própria na cidade onde trabalham. A situação era tão flagrantemente absurda que gerou incômodo. Aí, em 2018, durante o governo Temer, o Supremo negociou o fim do auxílio-moradia. Juízes que não tivessem gastos com moradia para trabalhar deixaram de fazer jus ao benefício, em respeito à lei. Em troca, todos os juízes ganharam um aumento de 16% no salário, em pleno aperto fiscal. E a casta dos juízes, que já ganhava 23 vezes mais que um brasileiro médio, passou a ganhar mais ainda. É assim que, no regime em vigor no Brasil, privilégios vão sendo transformados em direitos, institucionalizados.
Um levantamento recente coordenado pela pesquisadora Luciana Zaffalon joga luz sobre o mecanismo que faz com que esses privilégios aumentem cada vez mais. O estudo mostra como, na elaboração do orçamento do Estado, o governo paulista reserva cheques em branco de bilhões de reais – os chamados créditos adicionais –, que depois são distribuídos a portas fechadas, sem nenhuma participação social. Para 2021, ano de crise profunda, o governo vai dispor de quase 42 bilhões de reais – 17% de seu orçamento total. Os membros do Judiciário, que têm a obrigação de fiscalizar o Executivo, receberão 1,5 bilhão de reais. Isso é mais que todo o orçamento para financiar pesquisa científica, via Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a Fapesp.
Enquanto isso, para a maior parte do país, não há direito algum, nem aqueles explicitamente garantidos na Constituição: saúde, educação, transporte, lazer, segurança. O salário mínimo é de R$ 1.045, e é quase impossível sobreviver com isso num mercado distorcido por milhares de milionários ganhando do estado mais que um juiz europeu.
Nada disso faz sentido, tudo isso é nocivo para o país. Os brasileiros beneficiados por esse regime tendem a acreditar, alguns até sinceramente, que é direito deles que seja assim. Afinal, sempre foi, desde que se montou aqui a maior operação de todos os tempos de sequestro e tráfico de gente, a escravidão, que deu origem a um país com poucos cidadãos e muitos não cidadãos. Mas não. Por mais que haja uma longa história de decisões judiciais confirmando o regime de separação entre os brasis, elas são inconstitucionais. Estão em conflito com a garantia inequívoca: “iguais perante a lei”.
No mínimo, isso significa que o estado tem a obrigação de oferecer os mesmos serviços e garantias a todos e que seus servidores precisam estar no mesmo regime: dentro de uma mesma lógica de remuneração, de benefícios, respondendo a uma mesma Justiça.
É isso que os brasileiros querem: eles invariavelmente apoiam iniciativas para acabar com os privilégios no país e votam em candidatos que prometem fazê-lo. Só que o Brasil de cima, aquele que detém os privilégios, tem também o poder para evitar que eles acabem. Depois de identificar o alvo, podemos traçar o rumo para angariar apoios, à direita e à esquerda.
Quantas vezes não vimos projetos sendo vendidos como se fossem livrar o estado brasileiro do peso dos privilegiados e, depois de aprovados, acabarem reforçando-os? A última foi a reforma previdenciária de Bolsonaro, que alardeou ao Brasil o fim dos privilégios, mas acabou deixando de fora justamente os mais privilegiados, os militares, responsáveis pelo maior de todos os buracos na Previdência, os mais deficitários dos beneficiários
O regime que divide o Brasil em dois não vai acabar assim, com mudanças incrementais e pontuais, negociadas num ambiente distorcido, que acabam eternizando os privilégios disfarçados de direitos, defendidos por quem tem poder. Estamos tentando fazer isso desde 1988, com resultados pífios.
O único jeito de abolir um regime que distorce a sociedade toda é a partir de um consenso social. Precisamos enxergar esse regime em toda a sua extensão: os mecanismos que o mantêm funcionando, as instituições que o sustentam, as regras que o eternizam. E aí precisamos dar um nome para esse regime. Porque ele é tão concreto, brutal e institucionalizado quanto outros regimes que tiveram ou têm nome – o Apartheid da África do Sul, a Segregação dos Estados Unidos, o sistema de castas da Índia –, apenas mais secreto. Como chamaremos o nosso? A divisão do Brasil?
Depois de identificar o alvo, podemos traçar o rumo para angariar apoios, à direita e à esquerda, no Brasil e no mundo, para um dia abolir a Divisão – e unificar o Brasil. A dificuldade é que, para que isso aconteça, será necessário cancelar certos privilégios que hoje nossa sociedade considera direitos e, portanto, intocáveis. Só assim se derruba um regime. Na abolição da escravidão, em 1888, foi necessário cancelar direitos de brasileiros – os direitos de propriedade sobre seres humanos, o que fazia sentido uma vez que se decidiu que não era mais possível ser proprietário de um ser humano.
Algo parecido precisa acontecer de novo. Se não acontecer, o que teremos é uma sociedade cujas partes terão cada vez menos empatia uma pela outra, em que, portanto, a vida nunca valerá nada e isto não chegará a ser um país.