18/03/2009 VALOR ECONÔMICO
José Luis Oliveira Lima e Hugo Leonardo*
A crise mundial anunciada e percebida sensivelmente já no fim de 2008 mostra que setores importantes da economia serão afetados e não apenas aqueles mais expostos à especulação geral. Outra tendência já observada refere-se à diminuição da capacidade de arrecadação do Estado e dos diversos entes da federação. Não podia ser diferente, dada à estreita ligação dos repasses à União, aos Estados e municípios, por exemplo, com o bom andamento da economia.
Nota-se, no plano estadual, uma preocupação especial com a queda na arrecadação do ICMS. Em São Paulo, por exemplo, o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) concluiu que a queda da arrecadação do referido imposto foi de 12,9% em novembro em relação a outubro do ano passado. Esse declínio faz dos Estados as suas vítimas principais e é um efeito reflexo de um diagnóstico de dupla causa: em primeiro lugar se deve ao fato de haver diminuição da hipótese de incidência do ICMS com a desaceleração da economia; e, em um segundo plano, diz respeito ao próprio não-recolhimento do valor devido aos cofres públicos por mera opção ou falta de opção.
O papel do Estado será, na primeira hipótese, o de fomentador da economia visando o incremento arrecadatório. Já no segundo caso, a lógica que tem sido percebida é a do recrudescimento da fiscalização e da produção em série de autuações fiscais e consequente início de ações de execução, acompanhada da representação para a instauração de investigação e processos criminais contra os devedores. Essa é a preocupação principal em termos de respeito com o administrado, ainda que inadimplente, e mais que isso, com o cidadão que não deve ficar exposto ao poder coercitivo estatal ilegítimo. O devedor de ICMS não pode ser confundido com o sonegador do referido tributo.
No planejamento empresarial, em época de enfraquecimento do poder econômico, intensifica-se, em regra, a necessidade de optar por pagamentos urgentes e investimentos seguros. Nesse contexto, o recolhimento dos impostos devidos nem sempre ocupa o primeiro plano a ser executado. Não se trata necessariamente de sonegação fiscal, pois para a ocorrência dela sabe-se bem que o ardil, a ocultação de informações necessárias ao fisco ou mesmo a fraude de declarações e rendimentos deve estar presente, condutas essas tipificadas no artigo 1° e incisos da Lei n° 8.137, de 1990.
O problema surge quando se comunica exatamente o valor devido ao fisco acompanhado de todas as informações necessárias ao amplo conhecimento do quantum devido e dos prazos dos pagamentos. Suponha-se que, havendo essa perfeita comunicação, o recolhimento do ICMS, por exemplo, não seja realizado no prazo ou no valor declarado. Pergunta-se: o devedor está sujeito à incriminação tipificada na lei? A resposta é negativa.
No intuito de justificar essa conclusão, passa-se à corroboração de duas hipóteses em relação ao artigo 2°, inciso II da Lei n° 8.137: a primeira refere-se à atipicidade da conduta em relação ao dispositivo citado no que tange especificamente ao ICMS; a segunda diz respeito à inconstitucionalidade desse preceito nesse contexto. Explica-se. O comerciante ou o empresário que deixa de recolher o ICMS, antes declarado corretamente, não está sujeito às penas do artigo 2°, inciso II da Lei n° 8.137, mas encontra-se apenas inadimplente junto ao fisco. Isso porque, no caso do ICMS, o sujeito passivo é o comerciante, o industrial ou o produtor, jamais o consumidor final da mercadoria. São os sujeitos passivos da obrigação tributária tanto os responsáveis pela geração da hipótese de incidência do tributo, por exemplo, quanto pelo seu pagamento, e não os consumidores. Tanto é assim que em um caso de inadimplemento o executado é o responsável tributário e não o consumidor final.
Ocorre que, em regra, o valor do ICMS suportado em cada fase da produção é embutido no valor da mercadoria, por lógica de mercado, na medida em que esse produto é repassado em cada operação mercantil, acarretando muitas vezes a confusão de que esse fato levaria à conclusão de que o valor teria sido descontado ou cobrado, pelo simples fato de, em cada fase produtiva, incrementar o valor do produto final. Naturalmente, cada produto tem em seu valor bruto todos os custos da produção, entre eles, o do imposto, mas isso jamais pode levar à conclusão de que o tributo tenha sido descontado ou mesmo cobrado do consumidor. No entanto, como já visto, a lógica do ICMS não permite concluir que tal tributo seja descontado ou cobrado, pois ele simplesmente integra o valor do produto quando repassado. O sujeito passivo é e sempre foi o responsável tributário. Não há desconto ou cobrança. Comerciantes, industriais e produtores simplesmente arcam com o ônus do recolhimento, pois esse encargo a cada um deles pertence.
Nesse sentido, é atípica a conduta do contribuinte que declara de forma escorreita o ICMS devido e apenas não o recolhe no prazo devido. Caso se aceite como delituosa tal hipótese, estar-se-ia afrontando a Constituição Federal em seu artigo 5°, inciso LXVII, que veda a prisão civil por dívida. Essa é a situação relativa à flagrante inconstitucionalidade do artigo 2°, inciso II da Lei n° 8.137, quando instrumentalizado contra o devedor do ICMS. Ademais, o que se espera dos Estados, antes de se acionar a "ultima ratio" estatal, ou seja, o direito penal, é a busca pela composição com o cidadão-contribuinte, visando à superação do desaquecimento econômico que atinge a todos. Radicalizar significa agravar uma situação já de todo desconfortável para a economia do país.
*José Luis Oliveira Lima e Hugo Leonardo são advogados criminalistas e, respectivamente, membro do Instituto dos Advogados de São Paulo e da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos; e membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa