09/05/2022 GZH
Atual e ex-secretário da Fazenda e economistas com posições distintas apontam as consequências em caso de continuidade ou rompimento do acordo
Ressurgida a partir da mobilização de entidades e políticos e amplificada diante da proximidade das eleições, a discussão a respeito da adesão do Rio Grande do Sul ao regime de recuperação fiscal (RRF) proposto pelo governo federal também encontra dissenso na área econômica.
A discordância vai desde a concepção sobre o tamanho da dívida com a União — há quem diga que a conta, atualmente em R$ 74 bilhões, já está paga — até visões totalmente diferentes a respeito das implicações do RRF para o futuro do Estado.
A discussão ainda passa pelas atribuições do conselho de supervisão do regime, colegiado formado por três pessoas (uma indicada pelo Piratini, outra pelo governo federal e uma terceira pelo Tribunal de Contas da União) para fiscalizar o cumprimento das metas.
Defensores do RRF argumentam que a retomada do pagamento integral das parcelas da dívida (R$ 3,5 bilhões ao ano) resultaria em um retorno ao cenário de penúria nos cofres estaduais, com a eliminação dos poucos investimentos retomados nos últimos anos. Críticos do acordo argumentam que as regras do RRF limitam o investimento e a atuação dos futuros governadores e propugnam uma ação política para resolver o problema da dívida.
Embora a adesão do Estado já tenha sido aceita pela Secretaria do Tesouro Nacional, o Palácio Piratini precisa apresentar um plano de recuperação fiscal, cuja homologação depende do presidente da República. Antes, no entanto, é necessário que a Assembleia Legislativa aprove um ajuste na lei do teto de gastos estadual.
A fim de abrir espaço para essa discussão, GZH ouviu dois secretários da Fazenda (o atual e o do governo Tarso Genro) e dois estudiosos das finanças estaduais com visões distintas sobre o acordo que está sendo firmado pelo governo estadual com a União.
São eles:
Marco Aurelio Cardoso - secretário da Fazenda do Rio Grande do Sul desde 2019 e Economista concursado do BNDES.
Odir Tonollier – secretário da Fazenda na gestão de Tarso Genro (2011-2014) e auditor aposentado do Tribunal de Contas.
Darcy Francisco Carvalho dos Santos - auditor aposentado da Secretaria da Fazenda e do Tribunal de Contas, especialista nas finanças públicas estaduais.
Amauri Perusso – auditor do Tribunal de Contas, advogado e presidente da Federação Nacional das Entidades dos Servidores dos Tribunais de Contas (Fenastc).
Como fica o Estado caso a implementação do RRF seja concluída, na visão de...
Marco Aurelio Cardoso
O secretário estadual da Fazenda considera adesão ao regime um coroamento do ajuste fiscal feito nos últimos anos e aponta que as medidas de contenção de gastos são benéficas para garantir que a despesa caiba na receita do Estado.
— Conseguimos fazer um equilíbrio corrente nas contas e agora teremos um tempo para voltar a pagar a prestação cheia — projeta.
O secretário ressalta que o conselho gestor do RRF não terá poder de veto a atos do governador, apenas vai monitorar e apontar caso o Estado tome medidas contrárias à responsabilidade fiscal. Ele lembra que o plano será revisado a cada dois anos e que, se quiser, a futura gestão pode sair do regime, por meio da aprovação de projeto de lei na Assembleia.
— O que muitos veem como amarras, eu vejo como qualidade. Será uma conquista do cidadão que paga a conta ter o controle de gastos alinhado à capacidade de pagamento do Estado — diz.
Odir Tonollier
Crítico da repactuação do contrato da dívida feita em 1998, na gestão Antônio Britto, Tonollier considera que os encargos inseridos naquele ajuste tornaram a dívida “impagável”. O ex-secretário aponta que o governo federal se utiliza da dívida para engessar os Estados e que, no caso do Rio Grande do Sul, esse controle vai ser consolidado com o RRF.
— Com esse conselho de supervisão, o governador praticamente abre mão de suas funções, perde a governabilidade. O governo federal vai passar a gerir as finanças até que se pague a dívida. Mas essa dívida nunca será paga — opina.
Tonollier acredita que Estado não terá condições de voltar a pagar a parcela integral do passivo no final do regime e afirma que o acordo com a União limita os investimentos e inviabiliza o crescimento econômico:
— Quanto menos se investe, menos a economia cresce e menos o Estado arrecada.
Darcy Francisco Carvalho dos Santos
Autor de inúmeros artigos e estudos a respeito das finanças do Rio Grande do Sul, o economista acredita que o RRF é adequado para que o caixa estadual consolide o equilíbrio financeiro. Ele ressalta que o Estado terá de cumprir uma série de requisitos, como não conceder aumento para servidores acima da inflação:
— Com o tempo, pode haver concessões, não será uma regra sempre rígida. Mas não poderemos criar despesas se a receita não acompanhar.
Darcy aponta que o período de nove anos em que o Estado retomará o pagamento gradual da parcela da dívida abrirá margem para investimentos, propiciando o crescimento econômico e estimulando a arrecadação.
— Teremos uma passagem mais difícil entre 2031 e 2040, com a prestação em torno de R$ 6 bilhões ao ano. Depois, o percentual da parcela da dívida sobre a receita tende a ficar bem menor — pondera.
Amauri Perusso
Defensor da tese de que a dívida com a União já está quitada, em razão de irregularidades no contrato firmado em 1998, Perusso diz que o regime vai “eliminar as possibilidades de investimento do Estado” e que isso vai se refletir na piora da prestação de serviços públicos, como a educação e a infraestrutura:
— Teremos uma responsabilidade de pagar R$ 74 bilhões até 2048, acrescidos de correção e mais juros de 4% ao ano. No final desses nove anos do regime, não estaremos melhores do que hoje.
Perusso também vislumbra dificuldades na retomada do pagamento integral da parcela a partir de 2030, quando o acordo termina.
— Queria entender qual a lógica que diz que teremos um crescimento econômico mais um crescimento de receita que mostre que teremos fôlego para pagar a parcela integral da dívida — desafia.
O auditor ainda sugere que o Estado terá a autonomia violada diante das medidas do plano, supervisionadas pelo conselho gestor do RRF.
Como fica o Estado caso a decisão seja abrir mão do RRF, na visão de...
Marco Aurelio Cardoso
O chefe das finanças estaduais diz que, se o regime colapsar, o Estado terá de retomar, de imediato, o pagamento das parcelas da dívida, que somam R$ 3,5 bilhões anuais. Além disso, ficará impedido de efetuar o financiamento de US$ 500 milhões previsto para pagar precatórios, tendo que aportar R$ 2 bilhões anuais a mais na despesa.
— O efeito financeiro para o próximo ano é como se estivéssemos abrindo mão de R$ 5,5 bilhões — calcula.
O secretário salienta que a opção por não prosseguir no RRF significa apostar em uma eventual solução incerta no âmbito político ou jurídico.
— A primeira coisa que ocorreria é a zeragem do investimento. Depois, voltaríamos à discussão sobre o atraso de salários ou a majoração de impostos. É a vida que o Estado vivia nos últimos anos — descreve.
Odir Tonollier
O ex-secretário da Fazenda afirma que o Rio Grande do Sul não tem condições de voltar a pagar a dívida com a União na integralidade e reconhece que, sem a adesão ao regime de recuperação fiscal, o Estado viveria uma situação de impasse diante da cobrança do governo federal.
Questionado, Tonollier não indicou um caminho concreto para solucionar o problema de maneira imediata, mas ponderou que a solução para a dívida do Estado deve obrigatoriamente passar por uma articulação política.
— A política tem de funcionar. Precisaremos ter um governador que apresente o problema concreto e diga para o governo federal que essa não é a solução para o Rio Grande do Sul. Precisamos de uma solução permanente, de um planejamento para acabar com essa dívida — destaca.
Darcy Francisco Carvalho dos Santos
O economista vislumbra um cenário difícil para as contas do Estado, sobretudo porque o Rio Grande do Sul voltaria a pagar integralmente as parcelas da dívida com a União. Darcy não acredita em um acordo que permita ao Rio Grande do Sul permanecer sem efetuar o pagamento, já que a medida também teria de ser estendida a outras unidades da Federação.
— Um dia nós teremos de pagar a dívida. Quanto mais esperarmos, mais essa conta aumenta. Se acreditarmos que o Rio Grande do Sul será perdoado, o governo federal terá de perdoar todos os outros Estados — avalia.
E completa:
— Nenhuma região do Brasil ou do mundo se desenvolve com déficits frequentes.
Amauri Perusso
O auditor afirma que o Estado deve insistir na tese de que a dívida já está quitada — ou parte dela, conforme argumenta a seccional gaúcha da OAB em ação no Supremo Tribunal Federal.
— Não acredito na teoria de que a União, no dia seguinte em que não aderirmos, virá cobrar os R$ 14 bilhões que não foram pagos entre 2017 e 2022. Ela virá cobrar os R$ 74 bilhões que foram renegociados, o que não é razoável.
A exemplo de Tonollier, o auditor prega que o Estado precisa articular um caminho diferente para o pagamento da dívida:
— A solução para a dívida do Rio Grande do Sul é um ato político, e não econômico. Assim como é um ato político instituir o regime de recuperação fiscal.
Publicado originalmente no GZH. Leia mais (O acesso à matéria pode exigir assinatura pessoal.)