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08/07/2015 Zero Hora
Um tesouro bilionário perdido no Estado
Dívidas tributárias acumuladas ao longo de décadas deixaram ao Rio Grande do Sul uma herança dúbia. À beira do colapso financeiro, o Estado contabiliza R$ 36 bilhões em dívida ativa, nome que se dá aos débitos de pessoas e empresas com o governo, a maioria por não pagar impostos ou por questioná-los na Justiça.
Em teoria, a cifra seria suficiente para colocar as contas do Palácio Piratini no azul. Mas a realidade é outra. A média anual de recuperação é de R$ 1,1 bilhão, o equivalente a 2,8% do passivo – valor insuficiente para amenizar a situação de penúria do Estado.
O problema é que dois terços do passivo, segundo a Receita Estadual, já estão perdidos. Com registros que começam em 1965, não passam de papelada envelhecida.– Lamentavelmente, essa parcela da dívida acabou se tornando incobrável em face do tempo que passou. É fácil alardear que a solução da crise passa pela recuperação desses valores, mas não podemos simplesmente expropriar bens. Não temos esse poder. Fazemos o que é legalmente possível – diz o secretário adjunto da Fazenda, Luiz Antônio Bins.
Dos R$ 25 bilhões em moeda podre, mais da metade é objeto de ações que tramitam na Justiça. Integra o bolo processos envolvendo companhias como J.H. Santos, Imcosul e Hermes Macedo, que já não operam mais. Mesmo em casos de falência, quando não restam bens penhoráveis, o juiz não pode simplesmente extinguir as ações. Pode, no máximo, suspendê-las.
O prazo de prescrição dos débitos é de cinco anos, mas, enquanto o caso estiver suspenso, a contagem é congelada, e o Estado deve prosseguir nas buscas (por sócios, sucessores e valores que possam ser bloqueados). É por isso que processos antigos, com mais de 20 anos, continuam abertos e sem solução. Acabam em uma espécie de limbo jurídico, inflando artificialmente a dívida.
– Muito do que restou do passado tem a ver com a questão tecnológica. Tudo era mais lento. Hoje, existe preocupação em agilizar os processos – diz a juíza Alessandra Abrão Bertoluci, da 6ª Vara da Fazenda Pública, na Capital.Em 2010, por iniciativa da Procuradoria-Geral do Estado (PGE), foi aprovada lei que autoriza o órgão a desistir das causas inviáveis. Desde então, todas elas (cerca de cem mil) estão sendo reavaliadas, e mais de 10 mil foram extintas nos últimos três anos.
– Decidimos fazer um filtro. O que queremos é que o Judiciário coloque todo o empenho nos processos de maior viabilidade. Do contrário, os que realmente têm chance de retorno acabam sendo prejudicados – diz o procuradorgeral adjunto para Assuntos Administrativos da PGE, Cristiano Xavier Bayne.
ENTIDADE APONTA FALTA DE AUDITORES
Mas quanto, afinal, ainda pode ser recuperado? Via tribunais, cerca de R$ 9 bilhões. Via Receita, outros R$ 2 bilhões. A soma nem de longe é desprezível. A título de comparação, equivale a 28 vezes o valor aplicado em investimentos em 2014, com recursos do Tesouro estadual. É o dobro do déficit (quando o gasto é maior do que a receita) previsto para este ano.
Só que o retorno não é automático. Depende da celeridade da PGE e do Judiciário, que leva, em média, oito anos para julgar ações de execução fiscal, e da agilidade dos auditores da Receita Estadual, cujo número vem caindo devido a aposentadorias sem reposição.Apenas 40 trabalham na cobrança dos devedores, em um universo de 337,7 mil créditos tributários no âmbito administrativo.
– A defasagem de auditores é preocupante. Se houvesse um número maior, os resultados seriam melhores, não só na ampliação dos valores recuperados, mas na fiscalização, que é muito importante. Quando não existe percepção de risco, a sonegação aumenta – alerta o presidente da Associação dos Fiscais de Tributos, Altemir Feltrin da Silva, que defende a nomeação imediata de cem concursados aprovados em 2014.
Se for mantido o ritmo atual de cobrança, mesmo que a dívida parasse de crescer, seriam necessários pelo menos 10 anos para reaver os R$ 11 bilhões passíveis de resgate. E, ainda assim, sem garantia de êxito.
COBRANÇA JUDICIAL É O ÚLTIMO RECURSO E O MENOS EFICAZ
Os caminhos para recuperar o dinheiro devido são cheios de percalços. Tudo começa na Receita Estadual. Em caso de fracasso, a via judicial surge como a derradeira e mais demorada opção. Nos últimos anos, a cobrança administrativa tem sido mais eficiente, como mostra o gráfico abaixo.
– As pessoas acham que ficamos de braços cruzados, mas não é verdade. Assim que o imposto declarado deixa de ser pago, e antes mesmo de ser formalizada a autuação, já contatamos o contribuinte para alertá-lo – diz Lisiane Moraes de Azeredo, chefe da Seção de Planejamento e Programação de Cobrança, da Fazenda.
A recuperação na fase administrativa, em relação à média anual, passa de 80%. Em 2014, o índice representou R$ 1,1 bilhão, mesmo valor previsto para 2015. Para tanto, a Receita se vale de medidas restritivas como a emissão de Certidão Positiva de Débitos (que impede, por exemplo, a transferência de imóveis no nome do devedor). Além disso, registra os maus pagadores no Cadastro de Inadimplentes do Estado (Cadin) e, desde 2012, nos arquivos da Serasa.
Até o fim do ano, deve iniciar o protesto dos débitos em cartório. A medida já é adotada em prefeituras, como a de Porto Alegre (leia na página ao lado), e tende a melhorar os resultados.
– Em geral, os contribuintes têm interesse em regularizar a situação – diz o subsecretário da Receita, Mario Wunderlich dos Santos.
O desafio, segundo ele, é chegar aos grandes devedores, os chamados "contumazes”. Aqueles que, propositalmente, ficam inadimplentes por no mínimo oito meses no ano. Correspondem a 1,5% dos contribuintes e são responsáveis por 40% do ICMS declarado e não pago. Inevitavelmente, acabam na Justiça.
PGE DEFENDE META DE RECUPERAÇÃO
A via judicial tem seu ponto de partida na Procuradoria-Geral do Estado (PGE). Cabe ao órgão ajuizar as "ações de execução fiscal”, que se arrastam por anos.Em 2015, o objetivo da PGE é recuperar R$ 200 milhões, projeção próxima do que foi resgatado em 2013 e 2014. O valor é a metade do que falta ao Tesouro todo mês para honrar os compromissos em dia, como os salários dos servidores, mas os procuradores divergem de quem acha pouco.
– A meta é ousada se levarmos em conta o cenário de PIB recessivo – diz o coordenador da Procuradoria Fiscal, Cândido Martins de Oliveira.Por conta dos inúmeros recursos, os resultados são demorados. Além disso, a PGE se vale de uma lei para ajuizar processos somente quando a dívida supera R$ 10 mil. A estratégia, segundo o coordenador-adjunto da Procuradoria Fiscal, Guilherme Guaspari, serve para evitar que os custos processuais superem as cifras em discussão. Mas a iniciativa é controversa.
– No conjunto, o Estado acaba perdendo mais do que ganhando com essa postura derrotista. Há uma tendência excessiva à conciliação com quem, evidentemente, não quer pagar – afirma o desembargador Túlio Martins, presidente do conselho de comunicação do Tribunal de Justiça.A PGE discorda. Garante que a decisão, além de mais econômica, não livra os pequenos devedores das penalidades.
Foco nos "devedores contumazes”
Um dos principais objetivos da PGE, hoje, é atuar na "manutenção do crédito fiscal”. Isso significa defender o Estado nos casos em que contribuintes contestam a cobrança de tributos na Justiça. O coordenador da Procuradoria Fiscal, Cândido Martins de Oliveira, destaca que 45% do valor em discussão envolve grandes companhias.
– Essas empresas não deixam de pagar ICMS por falta de dinheiro, mas porque querem discutir a cobrança. Isso é lícito. Focamos nesses casos porque, se a nossa tese vencer, como já aconteceu no Supremo Tribunal Federal, o volume revertido é enorme – diz Oliveira.
Segundo o procurador, há grupos empresariais que planejam o não pagamento do tributo de forma legal, a partir de interpretações alternativas da legislação. A validade é decidida na Justiça.
Mas há, também, situações ilegais, e são estas as que mais preocupam a PGE. Trata-se de devedores contumazes que simplesmente deixam de recolher ICMS para se capitalizar e fazer concorrência desleal.
Há cerca de 10 anos, a procuradoria deparou com empresas que passaram a adquirir precatórios (títulos de dívidas do Estado reconhecidas pela Justiça) por 20% do valor na tentativa de utilizar 100% para compensar ICMS não pago. A manobra acabou barrada e levou muitas à falência. Para combater condutas desse tipo, a PGE está criando um núcleo de inteligência. A ideia é trabalhar em conjunto com órgãos como Polícia Civil e Ministério Público.
O congestionamento na Justiça
Em todo o Rio Grande do Sul, apenas a 6ª Vara da Fazenda Pública, em Porto Alegre, é especializada na dívida ativa estadual. O órgão tem duas magistradas, um cartório com 10 funcionários e 28,6 mil processos nas prateleiras.
As juízas Alessandra Abrão Bertoluci e Maria Elisa Schilling Cunha se desdobram para dar conta do volume, que não para de crescer. Em maio, a média de sentenças proferidas pela dupla de magistradas chegou a 12,5 por dia, totalizando 377 no mês.
Para racionalizar o trabalho, elas contam com o apoio de especialistas em administração processual. Além disso, são cobradas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sempre que uma das ações fica mais de 90 dias parada.– Fazemos o possível para agilizar os processos, mas é bom lembrar que, nesse contingente, também existem casos de contribuintes que estão se defendendo e que nada devem. Não lidamos com números, mas com pessoas – pondera Alessandra.
FALTAM VERBAS, DIZ DESEMBARGADOR
Além das ações acumuladas na 6ª Vara, segundo a ProcuradoriaGeral do Estado (PGE), há outras 70 mil em tramitação no Interior (em varas comuns) e no âmbito do Tribunal de Justiça – totalizando 100 mil. A PGE defende o reforço na atuação especializada para desobstruir o gargalo.
– A 6ª Vara faz um bom trabalho, mas a estrutura diminuta frente à complexidade das matérias nos preocupa, sem contar que existem mais de 10 varas atuando contra o Estado (especializadas em ações propostas por cidadãos, envolvendo pedidos de medicamentos e indenizações, por exemplo). Há um desequilíbrio de forças – aponta o procurador Guilherme Guaspari, da PGE.
O desembargador Túlio Martins, do Tribunal de Justiça, admite que a situação contribui para a demora na conclusão dos processos, mas diz que falta dinheiro para atender à demanda:
– O Judiciário só não aumenta o número de varas para tratar da dívida ativa porque não dispõe de recursos financeiros.
Problema também desafia os municípios do RS
Não é só o governo que acumula créditos. Os 497 municípios, segundo o Tribunal de Contas do Estado (TCE), registram dívida ativa superior a R$ 4 bilhões. Para reverter as perdas, o presidente da Corte, Cezar Miola, defende o protesto extrajudicial da Certidão de Dívida Ativa (CDA), iniciativa que o Estado promete adotar até o fim do ano.– Certamente haverá incremento na arrecadação – diz Miola.
O nome pomposo esconde uma medida simples. Na prática, o "protestado” fica impedido de obter empréstimos bancários, e isso faz com que regularize a situação.– Funciona bem, porque agiliza os pagamentos, inibe a inadimplência e desafoga a Justiça – resume o auditor Ivan Carlos dos Santos, do TCE.
Desde maio, Porto Alegre está entre as administrações que se valem do expediente. Segundo o superintendente da Receita Municipal, Fabrício Dameda, a cidade conseguiu o retorno de 30% dos R$ 2,5 milhões protestados naquele mês.
A prefeitura também mantém um call center para cobranças e oferece a possibilidade de regularização por telefone. Para acelerar o procedimento judicial, o município disponibiliza veículos aos oficiais de Justiça e servidores para ajudar no trabalho.
– Temos um diálogo permanente com o Judiciário, que vem trazendo bons resultados – afirma a procuradora-geral adjunta de Assuntos Fiscais da Capital, Bethania Flach.Para o juiz Alex Gonzalez Custódio, da 8ª Vara da Fazenda Pública, que trata da dívida ativa da Capital, iniciativas desse tipo fazem toda a diferença.
– O Estado deveria seguir o exemplo e ser mais diligente na cobrança dos devedores – reforça o magistrado.