04/06/2012 JORNAL DO COMÉRCIO
Fernanda Bastos
'O critério atuarial é um elemento do tripé de suporte do sistema previdenciário', diz Portanova
A Assembleia Legislativa deve apreciar, nesta semana, a nova proposta de reforma da Previdência estadual. Especialista em Direito Previdenciário, Daisson Portanova lamenta que os gestores tenham demorado desde a promulgação da Constituição até o início dos anos 2000 para uma tomada de posição sobre o problema.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Portanova diz que não considera confiscatório o projeto que aumenta a contribuição dos servidores estaduais dos atuais 11% para 13,25%. Para Portanova, a mudança no patamar de contribuição é importante para viabilizar o sistema nos próximos anos. Ele avalia que a proposta do Executivo preserva os pilares do sistema contributivo e, ao mesmo tempo, o protege de crises como as que estão atingindo países da Europa, como a Grécia.
O especialista também observa que a proposição do governo Tarso Genro (PT) poderá ser questionada judicialmente, por não apresentar os cálculos atuariais que embasam o aumento da alíquota. Além disso, aponta Portanova, o Tribunal de Justiça (TJ) poderá suspender a matéria classificando-a de confiscatória, assim como o fez no ano passado, quando o governo tentou aumentar de forma escalonada a contribuição.
Portanova ainda argumenta porque considera falaciosa a tese de que o sistema previdenciário brasileiro é deficitário. E projeta que o governo Dilma Rousseff (PT) irá optar pela derrubada do atual regime previdenciário, que vem achatando os valores das aposentadorias.
Jornal do Comércio - Que avaliação faz do projeto que busca aumentar a contribuição de 11% para 13,25%?
Daisson Portanova - Existe uma proposta filosófica nesse projeto. O governo Tarso, ao contrário do que fez o governo Dilma, entendeu que seria mais importante manter o sistema de Previdência com uma base de retribuição ampla, até o limite do teto constitucional do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), e garantir um regime universal para os servidores públicos. Então, tanto quem ganha o salário-mínimo estadual quanto o máximo estaria abrangido em todo esse universo, denominado Regime Próprio de Servidores Públicos e financiado com o percentual de 11% da contribuição do trabalhador e 11% do governo estadual.
JC - O governo chegou a criar a Fundação de Previdência Complementar do Estado (Funprev), e havia outra proposta, de 14%, que acabou derrubada pelo TJ, considerada confiscatória.
Portanova - Sim, mas de novo filosoficamente o governo entendeu que a consequência previdenciária deveria ser protegida, o risco social deveria ser protegido, não só até os R$ 3,9 mil, mas até os R$ 27 mil do ministro do STF. Então, para entender a discussão do projeto do governo Tarso, temos que partir dessa premissa, saber o que está sendo privilegiado ou protegido. Essa proteção é mais universalizada, ela é muito mais ampla do que um segundo projeto que poderia ser a opção do governo Tarso. O governo poderia considerar a manutenção de benefícios até R$ 3,9 mil e, acima disso, os futuros servidores teriam uma complementação de aposentadoria por um regime privado complementar de capitalização. Não foi essa a opção. Então, a partir desse conceito previdenciário que amplia a base de proteção social vai se discutir se um percentual acima de 11% até 15% da contribuição será ou não confiscatório.
JC – Aí reside a divergência.
Portanova - Existem duas correntes que dizem que, criando um conceito de solidariedade social, se está ampliando a base de proteção. Se há uma universalidade protegida, o confisco deveria ser tratado antes sob o ponto de vista da solidariedade. Esse é o divisor do projeto do governo, está exatamente em manter a solidariedade social entre quem ganha pouco e quem ganha muito. Haver uma distributividade econômica desses patamares. Portanto, os 13,25% e os 14% não seriam confiscatórios. Isso é uma posição diante de uma interpretação dada pelo TJ, porque o tribunal parte do pressuposto de que tudo que for acima de 11% seja confiscatório. Essa nova proposta (de 13,25%), em tese, também vai ser rechaçada pelo TJ, mas temos uma outra instância. Como estamos falando de matéria no âmbito constitucional, de uma proteção e uma determinação de que o sistema de Previdência dos servidores tem que ser estabelecido por um regime próprio, e a Constituição determina isso, também tem que se adequar (o projeto) ao que determina a Constituição sobre o regime próprio por três princípios. Primeiro, o da solidariedade, que é a matriz que indica o projeto do governo Tarso; segundo, o equilíbrio financeiro, ou seja, se não há possibilidade de suportar esse sistema com 11%, constitucionalmente terá que se fazer uma análise técnica para saber se esse equilíbrio financeiro será preservado ou não com 11%, e já está provado que não. O terceiro aspecto é saber se atuarialmente o sistema é viável ou não. A partir desse debate, o governo estabeleceu um projeto e uma análise atuarial dizendo que o sistema atual em um período de três a cinco anos quebra, e, consequentemente, poderemos ter um revés de proteção social como está acontecendo na Espanha, Portugal e Grécia.
JC – Seria o pior cenário...
Portanova – Aí teremos um quarto impedimento, porque a Constituição veda a redução nominal dos benefícios. Então, há um imbróglio constitucional que não pode ser analisado simplesmente pela ótica do confisco, como fez o TJ. Tem de ser feita no conjunto constitucional e, consequentemente, os pilares estabelecidos pelas emendas constitucionais 19 e 20, que fixam critérios de solidariedade, equilíbrio financeiro e atuarial, são premissas de valoração que antecedem o princípio do confisco. Então, se faço uma opção e digo já que o problema é contributivo, acabamos com o regime próprio e vamos colocar todo mundo no INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). Óbvio que não é tão simples, mas, partindo para uma decisão mais simplória, se poderia dizer isso. O governo Dilma fez diferente. Diz que o risco social protegido com relação aos novos servidores será o teto previdenciário, aí o servidor contribui com 11%, o governo com 11% e se responsabiliza com isso até o teto dos R$ 3,9 mil.
JC – Outra crítica é quanto ao fato de o governo Tarso não ter apresentado o cálculo atuarial. Isso pode derrubar o projeto?
Portanova - Pode, porque a Constituição exige. O critério atuarial é um elemento do tripé de suporte do sistema previdenciário. Então, em tese, apesar de nenhum regime geral ou de servidores públicos federais ter estrutura e história com relação ao critério atuarial, pode sim ser indicado que há um vício no projeto de lei porque ele não demonstrou, atuarialmente, a necessidade daqueles 13,25%. O critério atuarial projeta riscos sociais, há riscos programáveis, que são a aposentadoria por idade e por tempo de contribuição, e os não programáveis, invalidez permanente ou temporária, morte e incapacitação decorrentes de acidentes. Todos os elementos têm que estar projetados dentro dessa nota técnica atuarial.
JC - O governo diz que o déficit é de R$ 5 bilhões e chegará a R$ 9 bilhões nos próximos anos.
Portanova - Primeiro, existe o passivo regular, ou seja, é aquela parcela de serviços previdenciários que é mantida mensalmente. Então, há um universo de algumas pensões remanescentes de filha solteira, pensão de servidor público falecido para a esposa e vice-versa, aposentadorias por idade e tempo de contribuição, invalidez... Existe um passivo extraordinário que ocorre das demandas por práticas de legalidade de qualquer dos governos que passaram pelo Estado. Há um passivo, por exemplo, da lei Britto que é devido ao professor aposentado ou ao viúvo aposentado. Então, não se pode dizer que o passivo é impagável. Além disso, esse passivo também tem a ver com a inércia dos governadores desde a Constituição de 1988 porque ela garantiu algumas valorações e proteções sociais e ao mesmo tempo havia um leque aberto para os governos regulamentarem contribuições, então se poderia ter elevado a base contributiva já há 20 anos. Isso tem de ser feito com uma visão de futuro, não de presente. Houve uma atitude corajosa do governo (Germano) Rigotto (PMDB, 2003-2006). No começo do governo Yeda (Crusius, do PSDB, 2007-2010), ela tinha condições políticas. Depois da crise do Detran houve um esfacelamento. Tarso demorou, o projeto tinha que ter sido apresentado em fevereiro.
JC - E como está o quadro no âmbito federal?
Portanova - O governo há muito tempo discutia que havia um déficit da Previdência e ele nunca foi esmiuçado. Então, a Previdência passou por essa transformação agora no pós-Lula, e tivemos na Constituição uma matriz de ampliação contributiva e um conceito mais ampliado que foi a seguridade social. Quando se fala em Previdência Social, se fala de um subsistema que está dentro de um sistema que é a seguridade social. Para financiar isso, temos várias contribuições. Hoje esse financiamento deve dar em torno de R$ 450 bilhões para pagar um custo de R$ 380 bilhões. A matriz é superavitária, tanto que se reaprovou a DRU (Desvinculação de Receita da União), que retira 20% desse dinheiro para gastar em qualquer coisa. A primeira matriz que temos que quebrar, então, é a de que não tem dinheiro para pagar a saúde, a assistência e a Previdência.
JC - Esse é um dos argumentos do senador Paulo Paim (PT) na tentativa de derrubar o fator previdenciário.
Portanova - Concordo absolutamente. O projeto do governo Lula contra a fome se valeu exatamente da matriz de assistência social. Uma das matrizes fundamentais de retirada do eixo de alijamento social foi a assistência social, porque era superavitária. O segundo modelo, que também é internacional, é o da saúde brasileira, que atende a 200 milhões de pessoas. O Sistema Único de Saúde (SUS), embora tenha vários problemas na execução, é um modelo de primazia estrutural. Então, esses dois modelos são já de antemão financiados por esse dinheiro. Sobre a Previdência Social, a análise que o governo faz é sob dois ângulos: o que entra e sai de dinheiro e o que entra de dinheiro obrigatoriamente para a Previdência e somente para ela. Esse valor é o que o empregado tem descontado da sua carteira profissional, do seu salário, e o que o empregador paga da folha de pagamento, essa é a base de financiamento da Previdência Social para o conceito do déficit. Se tenho um caixa em que entram R$ 100,00 e saem R$ 150,00, vou dizer que é deficitário. Se começar a depurar o que sai e tirar do que é pago de benefícios o que não seria da competência desse financiamento, já vou empatar o valor.
JC - E como avalia o fator previdenciário, que segue achatando as aposentadorias?
Portanova - A finalidade do governo era garantir equilíbrio fiscal e diminuir o acesso à aposentadoria, mas acabou sendo um tiro no pé, todos os trabalhadores começaram a buscar a aposentadoria para garantir uma forma indireta de sustento. E o governo reconhece isso no debate que está havendo agora. Na proposta do senador Paim, há uma clara posição do governo dizendo que errou e reconhecendo que o fator previdenciário não cumpriu seu papel. O governo fez uma economia de R$ 10 bilhões em 10 anos e, para um sistema que arrecada R$ 450 bilhões por ano, isso não é nada. Hoje, o governo está admitindo negociar, a matriz ainda é a mesma que foi tentada de forma evolutiva muito hábil pelo então deputado Pepe Vargas (PT). Ele criou a fórmula 85-95 em uma negociação com o governo, com o conhecimento do senador Paim.
JC - É a melhor alternativa?
Portanova - É uma alternativa, a melhor vai se dar diante das circunstâncias. Hoje, se criou a necessidade de garantir um fator neutro para o trabalhador, que seria a fórmula 85-95, que mantém o fator previdenciário para quem queira se aposentar antes, só que não com tanta agressividade. Hoje, a alternativa ao fator previdenciário nasce com algumas condições. Por exemplo, que o trabalhador se retire do mercado. Se você vai se aposentar com 100%, terá que se afastar do mercado de trabalho.
Perfil
Daisson Portanova é natural de Porto Alegre e tem 48 anos. Estudou no Colégio Marista Champagnat. Ingressou no curso de Direito na Pucrs em 1981 e graduou-se em 1986. Em seguida, fez pós-graduação em Direito Processual na Ufrgs. Especializou-se em Direito Previdenciário. Já dirigiu a Caixa de Assistência dos Advogados do Rio Grande do Sul, presidiu a Comissão de Previdência Social, da qual hoje é membro, e foi conselheiro da OAB seccional Rio Grande do Sul. É fundador e membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Social. Em janeiro de 2000, foi laureado pelo Instituto Superior de Estudos Previdenciários e Profissionalizantes. Atualmente, é membro da Academia Brasileira de Seguro e Previdência. Leciona em cursos de graduação e pós-graduação na Escola Superior da Magistratura, Uniritter, Unisc, Pucrs e Imed. Também atua como consultor, ministrando palestras no Brasil e no Exterior, e colabora para diversas publicações especializadas.